NOIVAS POBRES I & MAIS
noivas pobres i
a cada vez que a encontro, sei que é feia
essa mulher que me fascina sem querer,
que nem se importa de ter um tal poder,
porque me sabe possessão alheia...
contemplo suas feições, vejo a cadeia
de cabelos pelos ombros a escorrer:
sempre é vaidosa, só por mulher ser
e, bem no fundo, sabe que me enleia.
talvez seja por isso que se escusa
tanto de me encontrar, pela certeza
de tomar posse plena desse amor.
que existe aceitação nessa recusa
e, quando a vejo, percebo a sua beleza,
por trás da mulher feia e sem calor.
noivas pobres ii
fui em busca de eurídice, qual orfeu,
quis tirá-la dos sonhos onde estava;
por toda a volta, nada lhe falava
pois, se falasse, perderia o seu
corpo adorado, retornado à lava:
busquei ter esse amor, que fosse meu,
não resisti: a ordem me esqueceu
e falei-lhe nos versos que cantava...
ela tombou exangue, ante meus pés
e não pude revivê-la com meu pranto:
a lenda inteira se encontrava torta...
deixou o mundo das estranhas fés
e voltou para a tumba... no entretanto,
era em meu peito que se achava morta.
noivas pobres iii
ela vestiu-se de rosa e de esperança,
qual uma noiva de esplendor, tardia
a demonstrar que em sua alma ainda vivia
a fantasia dos tempos de criança.
desapontou-se em toda a sua cobrança:
o noivo desculpou-se, não podia
casar ainda... Talvez melhor seria
adiar por mais um ano essa bonança...
já não quis mais... sentiu a humilhação
por toda a espera e a preparação
que via agora, em sua mente, desprezada.
e retraiu-se assim, pobre menina,
cansada de esperar, na mesma esquina,
por essa boda mesquinha com o Nada.
noivas pobres iv
tu permaneces para mim a estrela
que entronizei em níveo pedestal.
o sangue já lavei de teu umbral,
mas a marca de meus passos se congela.
a estátua que se ergue, musa bela,
galateia não é, mulher fatal,
feita de pedra e com rosto divinal,
qual pigmalião queria revivê-la...
todavia, ela tem vida e não lha dei,
meteoro fugaz, que me requeima,
porém sem que consiga me aquecer...
passaste apenas e mal te conservei,
cometa multicor, em longa teima,
contra minha ânsia de querer-te enaltecer...
noivas pobres v
pensei primeiro fosses luz do sol,
que meigamente me iluminasses pela rua
e que os caminhos contemplasse, à vista nua,
sob o fulgor da luz desse farol...
depois... pensei que fosses luz da lua,
ainda assustada nas nuvens do arrebol;
luzir talvez mais pálido, mas de escol,
em que a ilusão perfeita continua...
porém a luz que me mandavas, reduziu-se...
agora brilhas como fraca lamparina,
que mal permite ler da roupa um rol...
mas para minha surpresa, descobriu-se
que essa luz minha vida ainda ilumina,
enquanto dorme tranquila em meu lençol...
ESTRELAS FEIAS I [abril de 2008]
Talvez exista uma possibilidade
de que eu tenha surgido neste dia:
que, anteriormente, fosse só vazia
a minha vida e sem realidade.
Talvez exista uma probabilidade
de que quanto eu recordo não seria
mais que memória implantada por magia,
nada, afinal, de qualquer continuidade.
Se for assim, talvez quanto a memória
registre do passado seja vão,
criado agora e eu nem sei por quem.
Sem que seja real esta minha história,
e os sentimentos deste coração
não se dirijam para mais ninguém.
ESTRELAS FEIAS II
Se for assim, se o mundo é repentino,
se minha consciência surgiu aqui e agora,
se toda a remembrança de um outrora
perdura igual ao repicar de um sino.
Se for alguém que imagina o meu destino,
mas que nunca reconheço nesta hora,
como é vaidade o que passou, embora
tenha surgido em minha senda: peregrino
pelas brisas do arco-íris; andarilho
pelas ondas da geada; sedentário
pelas imagens do sonho; um eremita
nas colinas do vento; um peralvilho
na corte da insolência; um herbanário
da digitalis que o coração palpita.
ESTRELAS FEIAS III
Fico a cismar, se realmente alguém
ou algo imaginou a minha presença,
se há qualquer razão de malquerença
ou se feliz eu possa ser, também;
porque, se me inventaram, mais além,
se tudo isso que sinto, perca ou vença,
é só inútil, indiferente ofensa
do galanteio ao nevoeiro do porém,
então, por que pensar no meu futuro,
se tudo é maya, a bruma da ilusão
e nada está, afinal, predestinado,
pois ocorra o que houver, esse monturo
de encantos vagos, como a anunciação,
se desfará num bocejo ensimesmado.
ESTRELAS FEIAS IV
Quando me lembro dos versos dos antigos,
que me foram exemplos e mentores,
quando recordo seu sofrer de amores,
sobrevivendo a todos os perigos,
nos pergaminhos e papiros, figos
de velhas árvores secas, estertores
de parcerias perdidas, vinho e dores
a que poemas de fuligem dão abrigos,
outros raspados por crueza, enfim,
dos palimpsextos em medíocre litania
a ser escrita, de valor tão nulo,
apenas penso: quem lembrará de mim,
daqui a dois mil anos...? Todavia,
recordo Sappho e lembro ainda Catullo.
CRIMES DE SANGUE I (2008)
A água vem de Deus e o seu batismo
não necessita das mãos de sacerdote:
a água em si transmite arcano dote,
oculto no poder de seu melismo.
A água nos transpõe por sobre o abismo
desta secura sáfara de archote
e sem que a luz apague, traz o mote
de ser a mãe do sangue e do tropismo.
É a água que nos salva e purifica:
água clara das fontes matinais,
parada água dos lagos sepulcrais,
essa água viva que à mente nos indica
onde lançar, enfim, a própria água,
que de nós flua e lave toda a mágoa.
CRIMES DE SANGUE II
Duas tendências principais se opõem aqui:
se a vida é o conteúdo de uma cesta,
cuja farinha se derrama aos poucos,
enquanto nos sacodem os eventos;
ou se a vida se expande, em frenesi
e tem tais energias que à funesta
entropia só presta ouvidos moucos,
no sangue e água de tais desprendimentos.
Ou toda a vida se encontra além da flama
que a carne anima e ao sonho purifica
e se dispersa por criar mais vida;
ou se assopra outra vez a mesma chama
que à nossa vida a biologia indica
um novo corpo que lhe dê guarida...?
chamada digital i
eu venderei amor por dez centavos,
por não dizer que te darei de graça:
amor em gotas negras se repassa,
hoje em dia, por espaços cibernéticos.
essas redes comportam mil escravos
ou carregam consigo, na hora escassa,
contatos e comércio. O amor sem jaça
é reduzido aos quadros mais estéticos.
desse modo, se sempre foi difícil
vender poesia, é agora mais barata:
para mostrá-la, é preciso pagamento...
assim eu pago a luz e a banda físsil
e mando pela rede o dom que mata,
naco após naco, meu próprio sentimento.
noivas pobres i
a cada vez que a encontro, sei que é feia
essa mulher que me fascina sem querer,
que nem se importa de ter um tal poder,
porque me sabe possessão alheia...
contemplo suas feições, vejo a cadeia
de cabelos pelos ombros a escorrer:
sempre é vaidosa, só por mulher ser
e, bem no fundo, sabe que me enleia.
talvez seja por isso que se escusa
tanto de me encontrar, pela certeza
de tomar posse plena desse amor.
que existe aceitação nessa recusa
e, quando a vejo, percebo a sua beleza,
por trás da mulher feia e sem calor.
noivas pobres ii
fui em busca de eurídice, qual orfeu,
quis tirá-la dos sonhos onde estava;
por toda a volta, nada lhe falava
pois, se falasse, perderia o seu
corpo adorado, retornado à lava:
busquei ter esse amor, que fosse meu,
não resisti: a ordem me esqueceu
e falei-lhe nos versos que cantava...
ela tombou exangue, ante meus pés
e não pude revivê-la com meu pranto:
a lenda inteira se encontrava torta...
deixou o mundo das estranhas fés
e voltou para a tumba... no entretanto,
era em meu peito que se achava morta.
noivas pobres iii
ela vestiu-se de rosa e de esperança,
qual uma noiva de esplendor, tardia
a demonstrar que em sua alma ainda vivia
a fantasia dos tempos de criança.
desapontou-se em toda a sua cobrança:
o noivo desculpou-se, não podia
casar ainda... Talvez melhor seria
adiar por mais um ano essa bonança...
já não quis mais... sentiu a humilhação
por toda a espera e a preparação
que via agora, em sua mente, desprezada.
e retraiu-se assim, pobre menina,
cansada de esperar, na mesma esquina,
por essa boda mesquinha com o Nada.
noivas pobres iv
tu permaneces para mim a estrela
que entronizei em níveo pedestal.
o sangue já lavei de teu umbral,
mas a marca de meus passos se congela.
a estátua que se ergue, musa bela,
galateia não é, mulher fatal,
feita de pedra e com rosto divinal,
qual pigmalião queria revivê-la...
todavia, ela tem vida e não lha dei,
meteoro fugaz, que me requeima,
porém sem que consiga me aquecer...
passaste apenas e mal te conservei,
cometa multicor, em longa teima,
contra minha ânsia de querer-te enaltecer...
noivas pobres v
pensei primeiro fosses luz do sol,
que meigamente me iluminasses pela rua
e que os caminhos contemplasse, à vista nua,
sob o fulgor da luz desse farol...
depois... pensei que fosses luz da lua,
ainda assustada nas nuvens do arrebol;
luzir talvez mais pálido, mas de escol,
em que a ilusão perfeita continua...
porém a luz que me mandavas, reduziu-se...
agora brilhas como fraca lamparina,
que mal permite ler da roupa um rol...
mas para minha surpresa, descobriu-se
que essa luz minha vida ainda ilumina,
enquanto dorme tranquila em meu lençol...