REFLEXO ANTIGO I & MAIS

reflexo antigo I [30-6-1979]

espelho antigo tenho há vinte anos:

utensílio de um estojo de barbear,

há muitas milhas a me acompanhar,

bem mudo a refletir meus desenganos.

é estranho: nesse tempo transitivo

pouco mudou meu rosto: alguns cabelos

que se tornaram brancos e os desvelos

deixaram pouca marca de incisivo...

somente envelheceu o coração:

a carne permanece na ilusão

de que este espelho as dores carregasse,

alastradas em lágrimas instantes,

a imagem distorcendo, rebrilhantes,

como se o próprio espelho lamentasse.

reflexo antigo II [25-4-2010]

contudo, nunca fui um dorian grey:

é bem verdade que o rosto mudou pouco,

mas a barba agrisalhou-se e não retoco

com qualquer tinta o muito que branqueei.

os cabelos rarearam... não tentei

qualquer loção, qualquer produto louco,

qualquer implante, nem peruca eu toco:

tenho meus anos e não me envergonhei.

foi ao contrário... ficou o coração

tão jovem quanto antes e a saudade,

de certo modo, até o renovou...

no palpitar constante da emoção,

encontrei dentro de mim felicidade,

enquanto o espelho há muito se quebrou.

reflexo antigo III

nunca pude afirmar que meu sorriso

tivesse efeitos de encanto glamoroso...

eu tenho dentes tortos e o moroso

processo de viver apenas viso

como afetando a face, neste aviso

de que belo não sou, mas generoso...

os dentes que cintilam, caridoso

retrato mostram da alma, mas o siso

fica escondido no ponto mais escuso,

lá no fundo da arcada e alguns arrancam,

pois sorriso mais bonito se obtém...

mas tal processo para mim é obtuso:

desguarnecem as amídalas e até estancam

do próprio siso a guarnição também.

reflexo antigo IV

o que é a estética, afinal, senão egoísmo?

achamos belo aquilo que o olhar

o jovem rosto de sua mãe lembrar,

quando vivíamos em pleno narcisismo...

seja em seus braços plenos de carisma

ou no fundo do berço a acalentar

esse ideal, por primeiro se formar,

do que era belo, visto nesse prisma,

pelo qual encaramos todo o mundo,

tal como o familiar e o repetido

estéticos se tomam por padrões,

porque tudo para nós, bem lá no fundo,

é o que nos serviu e que foi tido

como um direito por nossos corações.

reflexo antigo V

eu sou o mito das estranhas plagas,

sou o cisne de leda, o minotauro,

a chuva de ouro de klimt, um bom centauro,

sou a serpente do mar furando as vagas,

eu sou ildaba e innana, sou as bagas

de vinho escuro do deserto mauro,

sou eldorado e cíbola, dinossauro

de loch ness, o gume das adagas,

sou quetzalcoatl, heimdall, thor,

sou shiva e vishnu, eu sou dragão,

do mar o fundo habito, sou vampiro,

sou osiris e amon-rá e em meu calor

renascem as apsaras e, num condão

de inconcebível luz, dioniso eu viro!...

reflexo antigo VI

em minha casa, apenas eu não fumo,

somente eu não trago uma cerveja,

não porque puritana esta alma seja,

nem que contemple os outros com aprumo;

na verdade, eu apenas me consumo

em outros vícios que o coração me enseja:

o farol imaginário a mente beija,

a nuvem tênue que me inspira o rumo.

mil vezes eu prefiro o firmamento

que estas nuvens garças que se evolam

e se perdem dos tetos pelos cantos;

prefiro as nuvens tangidas pelo vento,

nuvens de chuva que trovões enrolam,

velos de bruma com que cardo prantos.

reflexo antigo VII

a vida é uma seringa, agulha e ampola,

que perfura a nossa carne, diariamente,

numa cravada de efeito surpreendente,

a vida bica e voa, pomba-rola...

a vida é escorpião, que traz na cola

um aguilhão mortífero e inclemente;

ela permite que vivamos, tão somente

para tirar-nos a carne que se esfola...

cada dia vivido é um dia a menos

que nos sobra da sentença de viver.

quem deseja viver, deve saber

que não se encontra aqui por dias amenos,

talvez pagando por culpa já esquecida

de um outro mundo, numa visão perdida.

reflexo antigo VIII

eu tenho súcubos em meus pesadelos,

essas lâmias sedutoras que me assaltam

quando os carinhos de mulher me faltam

e me vejo atormentado por meus zelos.

são as zuvembis que me arrepiam os pelos,

não os vampiros que os filmes nos ressaltam,

nem os trasgos famintos que nos saltam

a devorar a carne, ao percebê-los...

Mas tu, mulher, teus íncubos são teus,

quando te encontras então longe de mim,

sonhos penosos que nem sequer recordas,

os monstros de teu id, feios breus,

dos quais te esqueces, imaginando assim

teres sonhado comigo, quando acordas...

GARIMPO I [28/06/79]

Hoje tornou o de sempre para mim:

A esperança reluz, num aceno rebrilha

E no mesmo momento desfaz-se a presilha

Que a mão estendida a colher o jasmim

Julgara bem firme nas grimpas da trilha.

A correia desliza e, no abismo sem fim,

Balanço aterrado, encontrando-me assim,

Como antes, suspenso de frágil varilha

De solda e lampejo, em mortal rodopio,

No arco voltaico da estranha luzança,

Qual facho irreal recortando a brumança,

Da névoa severa, no atroz corrupio,

Em que a cada esguichar da ironia, a esperança

Se mostra ilusão remoinhando no estio.

GARIMPO II [25-4-2010]

Contudo, a esperança foi fiel companheira:

Por falsa que fosse, foi bem lisonjeira,

O sabor escorreu-me por meio dos dentes,

A cada mordida em tal fada traiçoeira.

Ah, Fada Esperança, quantas vezes me mentes!

A que ponto reluzes nos olhos dos crentes

E como consegues ser luz derradeira,

Perante o malogro de todas as frentes?

Que delícia, que dom esta espera intocável,

Capaz de conter o sarcasmo e a ironia,

Que a gente procura de mãos estendidas!...

Se não fosse a esperança de vezo insondável,

Que escravos seríamos da melancolia,

Concreta e sensível ao longo das vidas!...

GARIMPO III (2008) (Salve, Aretino!)

Devo fazer o elogio da maldade

se, de fato, quanto é humano me pertence,

que do povo em geral não diference

esta minha pretensa humanidade.

Mas preciso colocar-me em igualdade,

por mais que a podridão em mim se adense,

se a natureza sempre humana vence,

natural mesmo em nós é a crueldade.

Se não for física, é a mente que tortura,

que se diverte com o sofrimento alheio

e que procura torná-lo ainda maior.

De modo tal, que até quem não procura,

deve aceitar esse perverso meio,

sem a si mesmo julgar sendo melhor.

GARIMPO IV (2008)

Tu me mandaste um beijo ao coração...

É um belo voto, agora corriqueiro,

mas que sempre me assusta, qual ligeiro

mordiscar que hemorragia esta emoção...

Porque tal voto sempre me dá a impressão

de um vampirismo pouco alvissareiro.

Por mais que o beijo seja lisonjeiro,

em tanta intimidade e brotação...

Mas não faz mal, pois se, de fato, um dia,

tu me beijares bem fundo ao coração,

descobrirás que, bem lá dentro, é doce.

Doçura tal, que quem beija se vicia

e quererás outros beijos, com razão,

depositar, qual se amor teu eu fosse...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 19/09/2011
Código do texto: T3229497
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