FALTA-ME ASA
Falta-me a asa. O aeroplano. O plano. Faltam-me ventos. Sou só nave sem combustível.
Falta-me amor, carinho, mimo, costela. Sou apenas corpo.
Falta-me diálogo, conversas, risos e frisos faciais. Sou apenas miolo.
Falta-me poesia; sou apenas página virada.
Faltam-me cochichos. Sobram-me semblantes desacordados
Sobra-me horror. Falta-me sabor
Sobra-me insônia. Falta-me acalento, barulho de chuva.
Sobra-me calor de prévia de verão. Falta-me calor de inverno
Falta dezembro, sobram-me janeiros.
Me segura um palmo de sequidão. Empurra-me amores fraternos e sólidos.
Não vi a lua nunca mais. Deixei de ser poeta romântico.
O sol aparece de manhã, o relógio me empurra à lida. O sol se esconde num crepúsculo, o relógio me empurra à escura lágrima noturna.
Uma suíte da casa era um ninho, hoje uma eternidade. As paredes que não têm ouvidos distanciaram umas das outras se fazendo uma enorme cápsula intragável.
Uma tristeza que passa como uva, molha o rosto a água de chuva. A uva passou na fria geladeira. A geladeira passou na minha alma e me tirou a vontade de querer...
O traço das borboletas amarelas no riso dos olhos azuis da pureza da criança, num domingo à tarde foi a gota d’água para meu sorriso voltar a aparecer andando pelas estradas que nos levavam ao enorme castelo de sonhos. Só os sonhos. Meu castelo nem existiu...
Pareço-me com a própria amargura, mas meu coração se parece com a esperança em carne viva
Os pulsos aceleram. O pulsar dilacera. Não tenho mais poros. A suada vida me levou ao desbotamento.
Pareço bicho da seda. Trabalho para servir de vestes. Vestirei-a de medo, de lembranças. De aparências. O relógio que me empurrara à luta é o mesmo que provará minha conduta, maturada. Inocente. Romântico eternamente. Versátil, colaborador, sonhador, cantador de sólidas lembranças.
Espero que o vento sopre sorrateiramente sobre meus ouvidos a melodia engasgada que carrego sem poder musicá-la.
Que sorte teria um homem em dispor de momentos para falar de si?...