DONS GRATUITOS V & MAIS

DONS GRATUITOS V

Eu me prendo em mim mesmo e som algum escuto:

Ausculto o coração e só silêncio vejo.

Fremeram as narinas em vagabundo adejo,

Até os pulmões se calam em prematuro luto.

O sangue já me jorra do arterial conduto:

Lançou-se por aí, em palmilhar de andejo

Ou talvez ressecou-se, um malquerido pejo,

Em qualquer ponto morto deste meu lombo hirsuto.

São horas mortas estas, contemplo deste o alto

A multidão que dorme, em posição fetal,

Ou jazem abraçados contra o espaldar de alguém.

Só eu não adormeço, de todo o sono falto,

Nem tenho quem me acolha em abraço natural,

Enquanto o som escuto do Nada e de Ninguém.

DONS GRATUITOS VI

Gosto da chuva quando passa e mal molhado

Ainda deixa o céu e a fresca brisa,

Mui gentilmente, pelo ar, desliza,

Com um frescor de água renovado...

Gosto do amor, também, quando acabado

Se esgota o ato e a sensação concisa

De uma completação a mente alisa

E afasta por um pouco o triste fado...

Mas quanta vez, após a chuva, o Sol

Nos amargura, em seu cruel mormaço!...

E então sofremos quase insolação...

E quanta vez o amor não é farol,

Porém luz negra, em malfadado abraço,

Que mais amargo nos deixa o coração!...

MUTUALIDADES I (2008)

Bem lá no fundo eu sei que nada queres

de mim, exceto o preito de um momento;

eu já te dei completo o sentimento:

nada mais resta para teus quereres,

talvez te desse mágoa e malmequeres;

talvez te desse pranto em rendimento,

como penhor de teu investimento,

mas só o aceitarás quando o quiseres;

na verdade, eu bem sei não queres seja

o meu amor de cobrança malfazeja,

porém um pouso firme e duradouro;

mas nesse dia, talvez, que teu ansioso

coração enfim quiser um paradouro,

sabes mui bem onde acharás repouso...

MUTUALIDADES II

Sei bem não pensas mesmo merecer

deste amor que te devoto a imensidão

e, quiçá, nem mereças devoção

do sideral fulgor do meu querer...

Mas é que, por meus olhos, vou beber

essa tua imagem, em pura sem-razão,

tão escassa como é a apresentação

dessa chuva em acalmar o meu sofrer.

Sinto-me seco, vivendo em doce ausência:

cresta-me o vento todo o pensamento

e sombra ou nuvem nem me chegam perto;

temo que um dia hás de chover benemerência

sobre meus ossos mudos de um momento,

sem que mais possa reflorir o meu deserto.

MUTUALIDADES III

Líquida flor que o sangue me alimenta,

com seu olor sutil, que me atormenta;

líquido amor que a alma me sustenta,

nesse terror que busco e me contenta;

líquido odor que de teus seios brota,

com sons de treva e luz e me derrota;

líquido amor que mais amor conota,

no seu fervor de entrega, em dor ignota;

líquido sexo que vejo em teus refolhos,

flor carmesim de tessitura pura,

canópia que me atrai, em sonho antigo...

Como me afogo, perdido em tais escolhos!

Líquida flor de brotação madura,

na taça líquida desse teu umbigo!...

MUTUALIDADES IV

Chego a ter medo, agora que é gentil,

depois de tanta grosseria no passado.

Sempre atribuí a seu corpo atribulado,

às dores que sentia, esse buril,

com que me perfurava; essa sutil

certeza em cada golpe; bem marcado

o alvo pretendido; bem cortado

mais um fiapo de amor, em prazer vil.

E agora, bem me custa restaurar

essa confiança que perdi, inteira,

por tantas vezes que me foi maldosa.

E eu sempre com paciência, a demonstrar

o amor sentido um dia e a derradeira

gota de fel que ainda me serve, generosa...

CÁRCERE I

Quando a tomar nos braços, mais amor

eu mostrarei, no perpetual ensejo,

do que o amor sedento de desejo,

em que se bebe a bênção sem valor.

Quando a tomar nos braços, meu torpor

será posto de lado, no seu beijo:

o que é um amor profundo, agora eu vejo,

muito mais do que julgara meu calor.

Quando a tomar nos braços, serei dela,

até um ponto em que nunca pertenci,

por mais sinceros fossem meus abraços.

Porque me abriu ao coração uma janela,

nos entreolhamos por instante... E vi

que era o momento de a tomar nos braços.

CÁRCERE II

Teu beijo me negaste pelo tempo

que se contém na casca de uma noz.

Se pareceu tão longa a espera atroz,

quando o beijo chegar, verei que o tempo

não se passou sequer. Existem nós

que ligam entre si os dias do tempo,

como se juntos fossem nesse tempo,

desde o momento em que ficamos sós.

O tempo sobre o tempo recurvou-se

e meu desejo, a escoicear, curvou-se,

porque esse beijo tanto o tempo tarda.

Pois o tempo recusou e o tempo o guarda,

de modo tal, que quando o queiras dar,

talvez nem saiba mais como beijar...

CÁRCERE III

Amor de solidão, amor de grumo,

amor desmantelado de incerteza,

amor de planta, inerme e sem defesa,

que não pode jamais tomar seu rumo.

Amor de aceitação, amor de insumo,

amor reativo, amorfo e sem beleza,

amor de aceitação, amor por lesa

curvatura ao destino, amor sem prumo.

Amor composto apenas de inação,

vendo ao redor amor que é proativo,

amor de curvatura ao assassino,

Amor formado tão só de dilação,

amor composto de angústias de menino,

que roem, bem lá dentro, o coração.

CÁRCERE IV

Eu te encontrei na tua solidão

e na minha solidão tu me encontraste;

mas não querias, tanto te afastaste

quão grande o vácuo de teu coração.

Ao insistir, mantive a discrição

e mantida a discrição, tu te lançaste

e em outras tentativas te encontraste

com o que te parecia outra paixão.

Alvo da ausência, tal que essa evasão

para os domínios sempre solitários,

de certo modo, teu vazio enchesse...

Talvez porque ao unir tua solidão

com a minha solidão, espaços vários

aumentariam, que a tristeza preenchesse.

CÁRCERE V

Tenho saudade é disso que não vi,

porém que os outros viram e consigo

de ti levaram para alheio abrigo,

coisas que nunca restituirei a ti.

São pedaços de ti que encarceraram,

esses de teu passado de criança

da adolescente que a vista não alcança,

da idade adulta até, que me roubaram.

Mas não posso assim tomar de alheios olhos

a visão almejada dos refolhos

ou tal mirada, até mesmo indiferente,

daqueles que te olharam pela rua,

ou que te viram, quem sabe, toda nua

e guardarão tal lembrança eternamente.

CÁRCERE VI

Cada um que te viu, levou-te a imagem,

ou por prazer ou capricho inconsistente.

Não importa que te amasse ou indiferente

e até bem feia julgasse tua visagem...

Eu só queria, num gesto de coragem,

arrancar deles todos, imponente,

os retratos de ti, cada pingente

de que conservam nas mentes amostragem.

Eu só queria que por tua vida inteira

apenas eu te visse, interiormente

e minha fosse cada qual dessas visões...

Que ninguém recordasse a mais ligeira

memória que eu roubasse, diligente,

e a replantasse dentro em minhas ilusões...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 13/09/2011
Código do texto: T3218090
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