SAUDADE COMPANHEIRA IV & MAIS

SAUDADE COMPANHEIRA IV

Disse Deus: "Haja luz!" E a luz se fez,

como estágio inicial da criação:

o mundo inteiro é Sua imaginação,

tudo é diverso daquilo em que tu crês.

Disse eu: "Haja tinta!" E mês a mês,

os poemas escorrem de minha mão.

Não são reais. Sua significação

depende inteiramente do que vês.

Nós dependemos da imaginação divina,

mas eu dependo daquilo que imaginas:

és tu que pões nos versos teus segredos...

E é essa variedade que fascina:

as mil decifrações a que te inclinas,

enquanto a luz escorre entre meus dedos...

SAUDADE COMPANHEIRA V

"Nos dias de festa de Bordéus se veem,

as mulheres morenas dessa terra,

pisando a seda do solo que ela encerra,

enquanto os dias de Março se mantêm,

quando iguais são os dias e as noites,

lentamente a cruzar pontes estreitas,

que para sonhos de ouro foram feitas,

embaladas pelo vento, em seus açoites..."

E nesse sonho brando de Hölderlin,

que nesta noite eu traduzi assim,

vejo o fantasma do poeta louro,

que fugiu de Bordéus, em seu desdouro,

sem que ninguém conheça exatamente

a razão dessa fuga surpreendente.

SAUDADE COMPANHEIRA VI

Como uma pétala, eu penso nas tuas faces,

desmesuradas de frescor na sua mordida:

tomas minhalma e a levas de vencida,

oh, pétala de flor, na flor que nasces!

Como uma pétala, eu quero que me enlaces,

na doce confusão dessa ferida:

aspirarei em ti, rosa perdida,

esse perfume da rede em que me abraces.

Eu busco em ti o derradeiro orvalho,

acumulado na aurora deste ensejo,

orvalho feito geada em luz de agosto.

E me apresto ao assalto desse talho,

na final busca de sugar-te um beijo,

sobre a pétala vibrante de teu rosto.

SAUDADE COMPANHEIRA VII

Preciso comprar meias de algodão,

melhor do que as de lã para meus pés;

meias de náilon não têm as mesmas fés:

causam suor e esfriam o coração.

Eu quero meias de algodão... Chulés

provocam muito menos; ilusão

recobram de minha infância, na emoção

desse conforto antigo; meus bonés,

sobre a cabeça, combinam com essas meias

de algodão de antanho; de alto a baixo

me sentia defendido e a proteção

derivava das mais cinzentas teias

do carinho do inverno, em que me encaixo

mais na saudade, pois pedi sua mão...

SAUDADE COMPANHEIRA VIII

Teu corpo acamparado de nenúfares,

recendendo a carmim, áspera jóia,

sabor de madrepérola e azorrague,

temor de sol, ao som de mil aljofares.

Teu rosto cor de lua, no arrebol,

palidescente e quedo, amora verde,

luz desvario, evanescentes olhos,

rubor de prata e ínclito penedo...

Penhasco em que rebentam malmequeres,

verde sabor de doces pirilampos,

procela azeda de cantar felino,

vil meu desejo em pleno latrocínio,

de macular os figos de teus seios

com a seiva amarga que brota de meus lábios.

SAUDADE COMPANHEIRA IX

O verme do desejo que me atenta

não morreu descarnado pela idade:

por mais que o repudie, sem vaidade,

logo ressurge e em nova voz se aventa.

São essas novas promessas que apresenta:

que se apenas eu me desse à veleidade,

poderia ter abraços de verdade,

ao invés de espasmos de saudade lenta.

Mas eu me prendo à fúria do dever,

não me dou tempo a instante de lazer

e até mesmo da poesia fiz trabalho.

É como se eu quisera castigar

o próprio ideal do sonho a dealbar

e o reduzisse às fagulhas desse malho.

SAUDADE COMPANHEIRA X

Embora eu te possua, meu deleite

é acometido de fulgor masturbatório:

minha explosão em ti é purgatório,

em que minhas culpas escorrem como azeite...

Eu me derramo todo, em longo aceite.

Fica apenas a casca, esse envoltório,

que chamo de meu corpo, o ostensório,

enquanto o sacramento em ti se ajeite...

Minha carne é nada mais que esse sinal,

do visível e do externo que restou,

depois que inteiro me dissolvi em ti.

E o próprio cérebro derramo no final.

Teus olhos são escolhos. Naufragou

o quanto eu era, enquanto te possuí.

COMENTAIRÔNICOS I

Já foi cartaz exposto num painel,

que no lixo encontrei, vencido o prazo

do vencimento, quase por acaso

e para mim salvei, para meu bel-

prazer, pois pretendia dar quartel

a esta folha, em mais um álbum raso:

proteção para selos. Mas o caso,

no fim, mostrou-se outro. Foi papel

para estes sonhos em que me estremunho.

Foi leito de meus versos, recortado

em quatro fragmentos, reto e verso;

pois cabem dois poemas em rascunho,

que eventualmente, depois de repassado,

será rasgado e ao vento assim disperso.

COMENTAIRÔNICOS II

Talvez devesse escrever um poema em branco:

bancar o concretista ou o charlatão,

muda a palavra de meu coração,

elíptica, na supressão de meu arranco

de sentimentos frios ou gesto franco,

esperando de você a interpretação,

já que todo poema é uma ilusão,

de significado vácuo e sempre manco,

deixando espaço ao interlocutor,

para dar aos vazios preenchimento,

pelo que sinta em seu peito repassar,

na emergência do verso, em seu frescor,

das mil conotações de seu momento,

porque só exprime seu próprio interpretar.

COMENTAIRÔNICOS III

Formatos, desformatos, em mil formas o soneto

desencadeia cadeias no sentido em que te leva,

desencandeia candeias em luminosa treva

e a cripta descripta em esplendor secreto...

Valor e desvalor se encontra em cada afeto:

no incolor da cor a imensidão do Deva,

no insípido sabor a fome não se ceva,

no som menos sonoro o amor mais abjeto.

Contatos, descontatos, de peito contra peito,

trações, descontrações, no rosicler da mágoa,

leais e desleais em cem foros de bondade.

Desvelo revelado no defeito do perfeito,

quadrados enquadrados pela secura d'água,

na modéstia imodesta que mostra ser vaidade.

COMENTAIRÔNICOS IV

Deserto o corredor. Nem luz, nem som,

nem viva alma. O porteiro garantiu-me

não ser feriado. Ninguém comunicou-me

que algo houvesse hoje nesse tom...

Aulas suspensas não são de bom-tom:

os alunos pagaram. Contratou-me

a universidade. Inda que mal pagou-me,

comprometi-me com esse parco dom...

Assim, me espanta mergulhar na escuridão

dessas salas vazias, ainda que

para ter luz, ligue apenas um botão...

E assim me sento à mesa, em solidão

e os fantasmas me interrogam, num porquê

eu não começo só com eles a lição...

COMENTAIRÔNICOS V

A história sempre foi mais desumana

do que humana foi. A crueldade

marcou a vida humana à saciedade:

é nos massacres que a raça mais se irmana.

Porque é mais fácil unir-se nessa gana

de combater os outros, que em bondade:

é simples ver que o ideal da humanidade

é mais a fantasia do que a flama...

A soma dos ideais bem lentamente

formou seu círculo, mal e mal e a medo:

colocar sonhos em prática é difícil...

Por isso a gente é tão indiferente

e, em complacência, vivencia o seu segredo

de que prefere à paz a bomba e o míssil...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 31/08/2011
Código do texto: T3193161
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