PRIVAÇÃO & MAIS
PRIVAÇÃO
Na falência do beijo, existe a graça
de não saber o quanto se perdeu.
Se esse ensejo alguém te concedeu,
mas nunca mais, maior é tal desgraça.
Porque assim, ao se saber como era,
não resta margem à imaginação.
O beijo que faltou, traz a ilusão
de que seria mágico, na espera...
E quantas vezes mais então se goza
o beijo que não houve e foi perfeito,
qual o ósculo retido na tua boca...
Que o beijo imaginado é como rosa
que não despetalou e sem defeito,
qual refrigério de esperança louca...
MALBARATO
Pecados, se os tive, foram contra mim,
não contra os outros. Porque compensei,
em carne e sangue, o pouco que tirei
de qualquer alma que fruí... Enfim
o que eu mais fiz foi negar a mim prazer
e a outras não trazer felicidade,
que eu saberia, com equanimidade,
muito mais repartir, que receber...
São estes meus venais pecados roucos,
são crimes inocentes, resfriados,
em diarréia pálida, mesquinhos...
Mais débeis que afiados, esses poucos
pecados de inação, aparvalhados
pela saudade despida de carinhos.
REGRAS DA VIDA XLIII
Não se trata de ser inconseqüente,
ou doidivanas, ou mesmo imprevidente,
nem tampouco portar-se indiferente
aos problemas da vida, a bem de adiá-los...
Menos ainda lhe serve preocupar-se:
levar a testa, aos poucos, a enrugar-se,
perder o sono, ficar a lastimar-se,
vendo os problemas e sem solucioná-los...
Você precisa é de buscar informações,
aconselhar-se com quem conhece o assunto
e fazer algo que seja construtivo...
Depois, deixe passar... Preocupações
são qual desenterrar um mal defunto,
ao pôr de lado um bem que ainda está vivo...
DILAÇÃO
Isso é o que sinto agora, enquanto escorrem,
qual sangue negro, garranchos no papel:
eu me sinto incapaz desse hidromel
sorver da vida, ainda que me forrem
a taça inteira com camadas de ouro.
Meu superego insiste em que trabalhe,
que a nada me autorize que atrapalhe
esse sulco profundo em que me agouro.
Me sirva por destino... Eu fujo e fico
e sempre foi assim, nunca busquei
o quanto mais queria; e refugiei
meus membros no fulgor do pobre e rico
viver fecundo de uma rica mente,
enciumada de um corpo que a sustente!...
NÓ GÓRDIO
Existe o fato de que a vida nunca é
o quanto se deseje. Existe um desespero
na falência diária, no entrevero
com as contrariedades... Um rodapé
de sonhos contorcidos, descartados,
que se podem pisar, mas não descalço,
pois dilaceram solas, qual percalço
seqüela do outro... Mesmo que assegurados
se encontrem o futuro e a certeza
de longa vida ter... Sabe-se lá
se algum dia a maré da adversidade
não se reverte. O difícil é a vileza
da rotina diária... A opacidade
do aborrecido... Que sempre tornará.
VANTAGENS
Nasci para o trabalho e não me queixo,
de dar ao mundo tal contribuição
que esteja a meu alcance e nunca deixo
um dever sem sua completa ultimação.
E sempre estou disposto à obrigação
de ajudar àqueles que o desleixo
levou a precisar... Levo meu seixo
para seu muro e afasto a humilhação
daqueles a quem amo. A vida é assim:
semeio as nuvens e espero a chuva mansa,
não busco tempestades nesta vida.
Pouco me importa que ninguém ajude a mim:
eu me ajudo a mim mesmo, na esperança
de trabalhar... até minha despedida.
ESTATUTO
Amor pequeno, não mais que de criança,
de mãe por filho, que nele recupera
o que nem própria mãe sequer lhe dera:
incesto meigo e obra de esperança...
Que se veja na mulher a mãe amada,
que não se pode ter, pois foi do pai,
mas nem por isso foi menos desejada:
amor que vem, mas que depressa vai...
Se nele existe um grão de sensatez;
mas se esse amor perdura, que castigo!
Terá de ser sofrido, hoje ainda mais,
que surgiu essa imensa estupidez
que é o Grande Monstro ECA, tal perigo
que a mãe-pátria vencer possa jamais...
BACHAREL
Eu vejo que tu mesma me excluíste
e te busquei deveras, tantas vezes.
De quantos modos demonstrei, bem viste
o quanto te queria e precisava.
O quanto sempre dei que me pediste,
o quanto percorri, por esses meses,
a senda amarga em que o amor insiste,
sem divisar o alvo que buscava...
Um dia a corda rompe, pois se esgarça,
se diariamente e sempre é distendida.
Até o metal encontra a sua fadiga,
mas, por enquanto, essa ferida é esparsa.
Sempre retorna a mente combalida
à busca pura da ilusão antiga...
EM LÚCIDA VINGANÇA
por toda vida foi o meu FestiM
magra exclusão e AdversidadE.
nunca fluiu com LiberalidadE
a cornucópia da abundância AssiM.
bem ao contrário, do pouco que GanhavA,
com grande esforço, sempre eu AjudeI
os que necessitavam; grande tempo DeI
à formação dos jovens que EncontravA.
agora, eles me encontram e SorrieM
ou me agradecem e tratam com RespeitO,
mas nada espero em troca do que FiZ.
enquanto as minhas forças não se EstieM,
continuarei a agir, do mesmo JeitO,
pois não me deram nunca o que mais QuiS.
AMOR DE CÂMARA XV
Já na minha vida o coração se agita
em ritmo diferente dos de outrora...
Desejos permanecem, muito embora
a forma em consumá-los, esta aflita
espera por um bem mais ardiloso
do que o simples fruir de um dom concreto
queira algo mais suntuoso e mais discreto:
que seja humilde e vista de orgulhoso
este anseio transitório e duradouro:
amor de barro envolto em fólio de ouro,
fama obscura e estética assimétrica,
austera e sibarítica, em serpentina ética.
E, enquanto faço amor, meu coração se move
ao escutar a música de Rimsky-Korsakov.
EXCLUSÃO
bem gostaria que, pronto, a meu RegaçO
as coisas se lançassem... no EntretantO
jamais me foi assim, embora o PrantO
não me suba, qual fumaça, para o EspaçO
[é por dentro que choro]. o véu do EspantO
eu rompo a cada dia... inda que BaçO
se me torne o olhar, eu EncompassO
a névoa que me envolve e abafa o CantO
e luto gentilmente, sem AlardE
fingindo até prazer, nesse CombatE
qual resultado fosse IndiferentE
mas, lá no fundo, o coração me ArdE
e me ressinto assim, desse AcicatE
que os bens da vida me nega, ComplacentE
LUDÍBRIOS
Eu tenho um passaporte para ingresso
em meu computador: chamam de senha
e não espero qualquer imagem venha,
sem digitar meu código de acesso...
Eu tenho um passaporte de arremesso
para o trabalho: a roupa de estamenha
com que me visto, embora vestes tenha
muito mais nobres. Externamente espesso
é o véu que me separa da feição
que queria em meu mundo e nesta mescla
combino a gentileza à qualidade.
Assim, dirijo à obra estes meus pés, cla-
ramente sorrindo à adversidade,
enquanto guardo o rancor no coração.