LUZ SOLAR V & MAIS

LUZ SOLAR V

A roda de meu Sol travei nos pés,

igual que heliotrópio desvairado;

o som da luz me deixa assoberbado

e o gosto dessa cor move-se ao rés

de meu chão e me leva aos aguapés

que crescem junto à fonte do pecado;

mas é puro e cristalino esse manchado

filete de água das mais antigas fés;

a roda de meu Sol gira o caminho

e me leva aonde quer, lesto perfume,

como o hálito das musas, nuvem doce;

apenas sorvo as gotas desse vinho,

a espinhar-me por dentro, no azedume

que me domina, tal qual se um monstro eu fosse!

LUZ SOLAR VI

Eu tenho um sol guardado no meu bolso:

uma carta de amor, que recebi.

Não que destino alcandorado aqui

tenha tido a missiva; ou reembolso.

Esse calor que me transmite é falso:

apenas me recorda o que senti.

Um certo orgulho, sim, porém a vi

condescendente, em simpático percalço.

Pois nunca acreditei fossem reais

os sentimentos expressos num capricho

e, como amava outra, a desprezei.

Mas leio a carta, às vezes, e às sensuais

palavras que escreveu ainda me fixo,

por ter perdido essa vida que larguei.

LUZ SOLAR VII

A maré baixa do Sol surfou no tempo

e a escuridão revestiu-se de veneno...

Em sendo homem, me aferro a ideal pequeno,

nessa harmonia esculpida em contratempo.

A maré alta do Sol então contemplo:

à escuridão, em queda livre, aceno...

Em sendo humano, me prendo agora ao pleno

reconstituir de mim mesmo como templo.

Não que queira consagrar-me à castidade,

mas é que os deuses me olham com favor

e estabelecem-me limites aonde vá...

E me constrangem a tal fidelidade

que lhes devolva, com igual louvor,

no mesmo altar em que minhalma está.

LUZ SOLAR VIII

Pois todo o Sol que rebrilhou na véspera,

enjaulado em clorofila e fotossíntese,

remanejado por análise e por síntese,

é transformado em néctar e nêspera.

Que toda carne é grama, cada folha

é o Sol desse verão; mesmo a lignita

que forma o tronco cujo orgulho agita

são sóis e a chuva que essa folha molha.

Assim... é o Sol que se transforma em lenha:

quando te aqueces na chama que crepita,

nada mais é que a luz do tempo antigo,

queimando para ti a velha brenha

da imagem que não viste e que concita,

dentro do peito, o seu calor amigo...

LUZ SOLAR IX

Eu vejo a gota d'água, na vidraça,

escorrendo para cima, em desafio

de toda a gravidade, sem que o estio

produza ventos que expliquem como o faça.

É como sobe lentamente, por pirraça

a energia de minha vida, posto o cio

e me apaga a memória do bravio,

perfeito orgulho do vigor sem jaça.

E tudo vai assim... O Sol, de noite,

por uma noite só; de dia, a Lua,

também só por um dia... e a alegria

substitui de minha tristeza o açoite,

só por um dia... ao desvendar-me nua,

entre meus braços, aquela que eu perdia.

PENUMBRA I

O fogo queima os dias do passado,

que se liberta em voltejos de fumaça.

Nessa visão, o mundo inteiro passa

e o calor de sua prisão é libertado.

Assim, em sacrifício calculado,

ramos floridos queimo, em plena graça.

Incinero essa seiva que o perpassa,

na busca mágica do tempo aprisionado.

E a cada vez que busco reviver

o tempo fúlgido do instante de prazer,

lanço achas de lenha na fogueira.

E então me lanço na fumaça, sem receio,

nesse encanto envolvido de permeio

à minha penumbra de uma vida inteira.

PENUMBRA II

A flor que hoje me murcha e me fenece

em um vaso com meu sangue foi plantada.

Bem adubada ela vive, prosperada

pela energia que dentro em mim decresce.

Nessa teia de plaquetas, que assim tece,

a flor consegue fazer-se interligada

com minha própria carne, assim sugada:

de folhas postas, a haste dobra numa prece.

Porque existe a ligação que assim ressumbra,

luxuriante, no roubo da potência

de meu vigor então prefigurado...

E ela me vê como um deus de penumbra,

que a nutre e a serve com benevolência,

apesar de somente a ter plantado...

PENUMBRA III

Os gregos já diziam: "Não se conte por feliz,

até que chegue o último dia de sua vida."

A sorte muda numa noite bem dormida

e quem contente dorme, acorda-se infeliz.

Esse ditado que o povo heleno diz

com frequência nos leva de vencida.

Mas, por sorte, também nos dá acolhida

quando a tristeza para trás se quis...

Às vezes, é tal qual em mundo novo

estivéssemos pisando e até o rosto

se nos antolha um pouco diferente.

Cuida o que pedes para teu renovo!

Porque Fortuna é traiçoeira como o mosto

e seu sorriso quase sempre é impaciente...

PENUMBRA IV

Nossa vida é diariamente uma corrida

que travamos com a Fortuna, essa inclemente

mulher cheia de ardis e indiferente,

cujo pendor é o de levar-nos de vencida.

Quando somos felizes nesta vida

e desejamos incólumes, que à frente

de nossos dias permaneça a quente

esperança de um porvir de igual guarida,

corremos para a morte, na certeza

de, enquanto vivos formos, arriscar-nos

a um súbito acidente ou desatino...

E tanta gente se mata por tristeza,

quando devíamos, felizes, libertar-nos

é da possível viravolta do destino...

PENUMBRA V

Seria, portanto, a razão do suicídio

a maior felicidade, com certeza:

para que nunca mude esta nobreza

que o tornará no mais válido homicídio.

Porque matar-nos em momento de tristeza

é, na verdade, um ato de sandice:

que o infeliz, nesse impulso de tolice,

destrói a chance de trocá-la por beleza.

Mas foram poucos os que o perceberam,

pois matam-se por honra, dor ou medo,

julgando serem condições constantes.

Se eu me matar, os que me conheceram

saibam portanto não ter sido por degredo,

mas num momento de alegrias delirantes...

PENUMBRA VI

Amor se anexa ao mais inapropriado

objeto visível na paisagem...

Como é constante amarmos a miragem

ou dar valor a objeto desprezado...

Nosso peito se projeta, num dourado

resplendor de intensa pabulagem,

que nos leva a derramar tanta coragem

sobre arcabouço apenas descarnado.

O amor está em nós e é bem presente.

Vemos na outra o que queremos ver,

que, na verdade, nunca esteve nela...

Foi só a solidão subjacente,

nossa fiel companheira do viver,

que contempla tal caveira e a sente bela.

PENUMBRA VII

Quando eu comia folhas de amoreira

fiz amizade com uns bichos-da-seda,

que me ensinaram qual era a vereda

da produção dos fios, nessa certeira

transformação do vegetal, que queda

desfiado nos teares, beira a beira,

urdido em tessitura derradeira,

em fino pano que à riqueza ceda...

Usei meus fios de forma diferente...

Nem reteci minhas roupas, nem vendi:

eu os bordei em incontáveis versos...

Uma espécie de casulo, certamente,

que desfiei de mim, quando sofri

e pelo mundo abandonei, dispersos...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 24/08/2011
Código do texto: T3180387
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