FERIDAS & MAIS
FERIDAS
É fácil de encontrar inspiração
por toda parte. E, no fatal momento,
que te atinge qual raio o sentimento,
necessitando a breve ilustração,
contida em poucas linhas, tal portento
é soberano raio de ilusão,
que se condensa em pleno coração
e então se concretiza em pensamento.
A cada olhar se vê, em cada flor,
nas coisas vagabundas, corriqueiras,
até na brisa de um ventilador...
Nem é preciso sentir qualquer ardor:
é só deixar que brote, alvissareira,
nas pétalas suaves de um odor...
E-MAIL SEM NOME
Engana-me de novo:
e faz rosnar em mim esta esperança,
este sonho pequeno, de criança,
que nem eu movo.
Torna a dizer-me
que algo entre nós dois sempre é possível,
que não nos restará só o indizível
sonho de verme.
Mente outra vez,
para que eu possa enfrentar a multidão
de outros desejos, plenos da paixão,
que não me dês...
Marca outra hora,
para que eu possa em tua câmara buscar-te:
ver-me envolvido em ti, para, destarte,
não ir embora.
Mas não te esqueças
que desejos são humanos e constantes,
inda que passe momentos delirantes,
sempre que peças.
Não deixo, enfim,
de querer outras mais, múltiplas cores:
pistilos e estames nestas flores
do meu jardim...
E assim, um dia,
por mais que amor me dê felicidade,
por mais pretenda ter fidelidade,
também te trairia.
Porque me algema a sorte,
mas minhas vistas para ti relançaria,
quando o momento assim conheceria,
de nossa morte...
baraço
a vida é como a web -- imensa teia
desses fios coriscantes e fugazes.
parecem soltos, mas presos por tenazes
se acham uns aos outros, numa alheia,
enfarruscada e cruel tapeçaria.
quando nos conectamos, nos parece
que o sistema é um servo e que obedece:
que, humildemente, nos atenderia.
mas quando fios se estendem e entrelaçam
no hiperespaço, as ligações se firmam,
sem conceder a mínima atenuante...
e não adianta aguardar que se desfaçam
os tais novelos, que apenas se confirmam,
ao tentarmos encontrar nosso barbante.
AD BESTIAS
Sou estrangeiro numa alheia plaga,
escravo das perdidas emoções,
retidas nos antigos corações
dos corpos que habitei; e que se indaga
por que se encontra nas fauces desta vaga
exaltação fugaz de encarnações,
exultação amorfa de ilusões,
cerceadas pelos golpes desta adaga,
cujo fio, afinal, foi embotado
pelos esforços de escolher a vida,
mas que ainda corta, em talho lancinante,
mais doloroso, por ser enferrujado
o seu gume, a cada finta desferida
contra meu peito, em golpe triunfante.
SETE DE UM GOLPE
Não me agrada o verão. Meu organismo
adequou-se para outra glaciação,
como viveram, na antiga geração,
meus ancestrais, em velho solecismo...
E quando aquece, nem sequer eu cismo.
Eu me derreto, em longa sudação.
Sentimentos não nutro e nem razão
encontro para tanto barbarismo...
Fico apenas perdido no mormaço,
sem energia e sem qualquer vontade,
sequer de redigir mais estas linhas...
Em meus próprios calores me embaraço:
mato mosquitos, com tenacidade,
por preservar as hemácias que são minhas...
NO ENCALÇO DO INVERNO
Apressa-se o verão que, para mim
é a estação mais odiada em cada ano.
Prefiro o frio -- o calor é desumano:
foi o minuano que me fez assim...
Antigamente, os dias bem mais frios
me pareciam. A cada ano que passa,
olho insistente através de minha vidraça
e vejo a chuva fraca, enquanto rios
costumavam correr pelas sarjetas,
mês após mês. E o frio vinha com elas,
soprado pelo vento recortante.
Porém agora, as nuvens são discretas
e as tempestades não são mais aquelas
que costumavam regelar o viandante...
O OURO DOS ANÕES
Até hoje persigo o pote de ouro,
que dizem se encontrar no fim do arco-íris.
E, se algum dia, algo de mim ouvires:
que eu desapareci, sem mais desdouro,
fiques certa que achei o imorredouro
prêmio encontrado sobre o vasto pires
que sustenta esse pote, em seus luzires,
desde que o tempo teve nascedouro...
Porque a pátina do tempo não marcou,
com seus dedos de geada, a recompensa.
Embora os anos passem, ainda há chances.
Talvez apenas reste o que ficou,
depois que tantos descobriram sua presença,
mas nada disso impede que inda o alcances.
TINTINÁBULO [campainha]
Há muita história de Cavaleiro Andante
que, encafuado no bojo da armadura,
vai salvar sua princesa, na aventura
em que um dragão derrota triunfante.
Também existem histórias de centauros,
cavalos-homens, ditos semi-deuses:
a brotação bastarda de outros deuses,
ou grifos... que seriam pterossauros.
Pois, em minha vida, sempre cri nas fadas
e até as busquei, no meu entontecer:
no olhar de uma mulher ver, triunfante,
a perspectiva das deusas semi-aladas...
Mas após tantos castelos percorrer,
percebi ser somente um Bobo Andante...
REGRAS DA VIDA XXXII
Não há razão para amputar os sentimentos
dentro da mente -- um resultado só
podemos conseguir -- tal como a mó
tritura a aveia em todos os momentos...
Esmagamos emoções dentro do peito,
porém passamos por ocasiões traumáticas:
por raiva e dor e sensações dramáticas,
por ansiedade e medo e por despeito...
E, mesmo conservando a dignidade,
não nos convém as dores represar,
nem, muito menos, fugir às alegrias...
Porque elas crescem na obscuridade,
vão aumentando até nos controlar
e dominar, enfim, os nossos dias...
RESPIGAS
O problema é crermos ser[em] reais
as emoções de nossos pensamentos...
(Sempre encarei os grandes sentimentos
como pretexto a versos imortais...
Assim, a cada dia, escrevo mais
e lanço as frases ao sabor dos ventos.
Melhor me fora expandir os desalentos
do que só me recolher, nesses fatais,
egoísticos casulos de paixões...)
Entregues a nós mesmos, sem jamais
realmente nos voltarmos para fora,
É que lançamos joio às ilusões,
essas bestas domésticas... banais
restolhos espalhados pelo outrora.
TORRENTE EM GAMA
O formato de invisível objeto
pode ser eventualmente deduzido
pelo formato que tenha produzido
em outros corpos, pelo seu trajeto.
O dano que produz o imensurável
tem forma definida e até padrão:
causa furos e fendas, de raspão,
num corte definido e revelável...
Também assim ocorre a todos nós,
quando amor passa sem nos ser visível,
marcando furo e fenda ao coração.
Pois deixa trilha bem perceptível:
abre seu leito, da nascente à foz,
deixando um rastro de devastação.