EMBARALHAR & MAIS
EMBARALHAR
Quando em desejo os teus olhos eram guizos,
me refluía a luz do seu piscar:
caleidoscópio indolente o teu olhar,
em seus lampejos tão claros quanto esquivos...
Quando vi nos teus olhos os granizos,
que já sabia iriam estraçalhar
as vidraças de meu rosto e recortar
meus sonhos, com seus golpes decisivos,
já sabia que tais guizos, em pandeiros
estavam presos... Não mais que percussão,
que nem sequer se prenderia ao meu trenó...
E descobri que teus guizos mais brejeiros
lançaste a um outro, sem hesitação,
seguindo em frente... E me deixando só.
O L O R
Eis-me aqui, pois ainda de teus beijos,
recendendo a saliva, em doce afeto,
envolto em teu perfume, tão completo,
quanto é total a entrega em teus desejos...
Eis-me aqui, pois ainda de teus braços,
carinhado dos pêlos cintilantes,
esparsas gotas d’ouro e triunfantes,
a rebrilhar em mim seus meigos traços,
numa cascata etérea e fugidia,
que recobriu-me, em plena luz do dia,
em teu candor de lua e ardor de lume...
Fulgor real e ruivo de quimera,
que a carne exuda e a carne minha altera,
permanecendo em mim, no teu perfume...
GAROFAGIA [beber salmoura]
Podado o coração, levei as veias,
em mortalhas de plástico, à calçada,
na aguardança da coleta já esperada
do caminhão que engole as coisas feias
que a humanidade lança, sem cuidados,
às ruas perturbadas pela história:
as belas coisas guardando na memória,
enquanto expõe ao mundo seus fundilhos,
como safra de véus esfacelados,
nesses recifes, de seus sonhos filhos...
Mas abriram os sacos, essa gente
que coleta garrafas e latinhas
e até vive de rendas tão mesquinhas,
na reciclagem feroz de ilusões mortas,
que tomou minhas artérias, complacente,
nos glomerados dessas veias tortas...
Pensando fossem fios, meus capilares,
na cor de cobre de meus sentimentos,
no azinhavrado de meus pensamentos,
deixando os fios de sangue nas calçadas
ou a escorrer pelas vestes, alamares
da cor sofrida das vidas acabadas...
AIODIA [canto poético]
Tornei-me aedo, não por vontade própria
quis ser quis ter
não ser não ter
esse talento, que em vate me tornou;
mas se algum deus assim me aquinhoou,
vou ter vou ser
não ter não ser
obrigação de voltar-me para a imprópria
vida de quem vaticamente age;
pena de quem aedamente reage.
O que eu tenho, recebi da Providência:
não sou não tenho
eu sou eu tenho
o gênio do poeta; sou maldito
com o dever que para outros é bendito
de escrever dever
sem ver sem escrever
o quanto os homens trazem na consciência,
porque sou vate:
por ser aedo.
EM PROJEÇÃO HOLÍSTICA
Percorrem os catéteres fractais
os golpes sorridentes do martelo.
Não há universo surpreendente e belo,
mas multiversos presos no jamais.
A quântica mecânica, em cabais
demonstrações nos indica esse modelo.
Mas estes mundos, por todo o meu desvelo,
dificilmente avistarei, são mais
os artefatos da ciência. Ou filosóficos...
Sou forçado a viver em plena Maya,
que a visão do real sempre me corta.
E me encadeia em reflexos utópicos,
em que minha vida a iterar recaia,
na sombra verde que estertora morta.
CONTRAGAMA I
Ela se foi. Consigo foi a sorte,
nestes primeiros meses tão ditosa...
Veio sombra abafada e perniciosa:
em tudo para mim a má consorte.
Trabalhei mal. Uma pequena morte
instalou-se na tarde calorosa...
Nada mais fiz de quanto a mente esposa:
até o computador sentiu o forte
desse miasma pálido e indolente...
Custava a funcionar. Pouco rendia
o meu esforço de horas indiletas.
Mesmo estando mais perto, é impotente
a reviver a sorte que trazia,
nessas primeiras semanas indiscretas...
CONTRAGAMA II
Hoje eu convido a dealbar meu grito,
sonoro e repugnante em sua delícia.
Até queria rendesse-me à malícia
dos estrofantos nus, nesse infinito
e blandicioso mar, em que me agito,
sem que possa confiar em qualquer um.
Podendo me apoiar somente num:
e esse sou eu, torporizado e aflito.
A vida é branca e passa sem alarma.
A noite verdeazul é indiferente.
E os deuses riem quando acenam esperança,
somente ao zombeteiro e sóbrio carma
lançarem sobre mim... Nesse dolente
esmaecer em mim de tua lembrança.
CONTRAGAMA III
No céu castanho vejo as nuvens verdes,
de um sol azul iluminadas negras...
Vermelha é a relva e, contrariando regras,
cresce horizontalmente; e logo perdes
a orientação mais natural que herdes,
ao ver a lua rósea, em tons alegres...
Contra o vento da noite rosa integres
tua mente lilás hoje. Também verdes
serão teus passos no arco-íris falsiforme:
te beija o vento em carícia de navalha.
O chão é mole a teus pés, como a paixão,
decomposta que senti, no céu disforme.
E enquanto gemes, a teu redor se espalha,
se estilhaça, em cristais, toda a emoção.
CONTRAGAMA IV
Hoje percebo que amor fez-se miasma:
os perfumes cerúleos que seduzem
provêm do ventre e, mesmo que te escusem,
não são desculpa real ao teu fantasma.
No rosto da mulher, teu beijo orgasma
um farnel de ilusões, que se reduzem
ao arco-íris... À poeira te conduzem:
à lantejoula morta que se espasma...
Amor de feromones, ou nem isso:
não mais do que emoção feita sorriso,
que me assaltou em meio à escuridão.
Almas penadas nesse amor castiço:
eflúvios que afastar de mim preciso,
para salvar meu próprio coração.
CONTRA-ALÍSEOS
A bordo vinha minhalma, acompanhada
pelas almas de outros. Ao timão,
até julgava estar, mas, de antemão,
já percebia achar-se contrariada
pela vontade da tripulação:
esses sonhos hirsutos... Engodada
pela mesma ilusão, antecipada,
de que pudesse tornar-se capitão
e demarcar qual rumo seguiria.
Ao girar, com esforço, todo o leme,
ao decidir qual seria sua derrota,
como antigo marujo, expressaria...
Mas se viu arrastada e, agora, geme,
por derrotada, de fato, sem ser rota...
ENDLÖSUNG [solução final]
Problemas se resolvem, cedo ou tarde:
basta aceitar, ao vê-la, a solução
que se encara, por pior a situação
e se revela, tranqüila e sem alarde.
O problema é desejar, sem revulsão,
a solução final que nos aguarde,
sem se julgar agir como um covarde,
somente ao não causar sua reversão...
Porque a vida nos mostra que a ilusão
albergada no peito, é apenas isso:
seu resultado é simples e concreto.
As coisas se resolvem, sem paixão,
sem ser o que queríamos... E é nisso
que a vida é aranha e a alma nossa inseto.
baraço
a vida é como a web -- imensa teia
desses fios coriscantes e fugazes.
parecem soltos, mas presos por tenazes
se acham uns aos outros, numa alheia,
enfarruscada e cruel tapeçaria.
quando nos conectamos, nos parece
que o sistema é um servo e que obedece:
que, humildemente, nos atenderia.
mas quando fios se estendem e entrelaçam
no hiperespaço, as ligações se firmam,
sem conceder a mínima atenuante...
e não adianta aguardar que se desfaçam
os tais novelos, que apenas se confirmam,
ao tentarmos encontrar nosso barbante.