CONFLAGRAÇÃO & MAIS

conflagração I (12 jul 11)

que seja o beijo teu sinal de alerta,

pois me trará futura escravidão.

o meu desejo por ti é imensidão

e a inteira alma para o amor desperta.

que seja o beijo teu a minha coberta,

nos dias mais frios de minha solidão.

que seja um beijo de sofreguidão,

para afastar de mim loucura incerta.

que seja o beijo teu bem solidário,

que terás de distribuir, imperecível,

por cada canto escuro de meu peito,

esse beijo de fulgor tão perdulário

que se torna dentro em mim inexaurível,

por ser teu beijo doce e sem defeito!

conflagração II

que seja o beijo teu farol aceso,

a me avisar da presença dos escolhos.

da memória a me inundar até os refolhos

e que em seus raios me mantenha preso.

que seja o beijo teu luar surpreso,

capturado no fundo de meus olhos.

beijo de estrelas, em cintilantes molhos,

amarradas por cometas. Que, indefeso,

se torne o beijo teu minha cruz secreta,

entronizada no altar do coração,

em antepêndios dos mais dourados panos

seja o damasco que para mim excreta

o vinho extrovertido em emoção,

no santíssimo sacrário dos enganos.

conflagração III

que seja o beijo teu meu alimento,

na maciez sutil de tua saliva...

que seja o beijo tal memória esquiva

da intimidade feliz desse momento.

que seja o beijo teu meu julgamento,

o marchetar que no meu peito criva.

e que teu beijo na alma então me viva,

quando se apague todo o pensamento.

que seja o beijo teu o meu fadário,

na encruzilhada que me leva ao vento.

que seja o beijo teu o meu sacrário,

no escrínio iluminado do portento

e se mantenha relíquia e escapulário,

gravado na minha boca em juramento.

conflagração IV

porque teu beijo vida própria alcança,

acima e além do humano entendimento.

metade é feita deste meu lamento,

metade ainda feita de esperança.

esse teu beijo de minha angústia mansa,

que me rodeia, em descontentamento,

beijo de flor, alado sentimento,

cravado em meu esterno como lança.

porque esse beijo vivo me suplica

que o alimente com outro beijo igual,

pois beijo beija aroma e então reluz.

e nesse aroma renovado fica,

envolto em relicário bem carnal,

qual fragmento da verdadeira cruz!

MODISMOS I (2008)

(Agradecimentos a Paulo Sant'Ana)

Se trata a obesidade, ultimamente,

através dessa espantosa cirurgia

de se encolher o estômago, uma via

de fazer com que menos se alimente

esse povo infeliz, que diariamente

se fazia alvo de troça, quando ouvia

os dichotes que na rua lhe dizia,

sem qualquer caridade, a outra gente.

Nunca pensei em meu estômago operar.

Minha gordura é outra, vem da mente

e me recobre as carnes de emoção...

Pois é isso que preciso retirar:

os sentimentos e a ilusão frequente,

para mandar encolher meu coração...

MODISMOS II (15 jul 11)

E eu sinto a classe média maltratada,

do jeito que está sendo no país,

pois com impostos, nosso governo quis

torná-la inteiramente eliminada.

Enquanto, com esmola descuidada,

lá no estrangeiro o seu contrário diz.

(Se fazes parte dela, sei não ris),

que ela foi dobrada ou triplicada.

Nessa famosa distribuição de renda,

tira de nós, com plena zombaria,

o quanto pode em impostos espremer...

E continuando tudo nessa senda,

terei também de submeter-me a cirurgia,

para fazer meus bolsos encolher!...

MODISMOS III

O problema não é a ênfase excessiva

na boa forma, porém o seu oposto:

que se insista até causar desgosto

em quem à tirania ainda se esquiva.

Não é preciso que todo mundo viva,

segundo tal padrão que lhe é imposto,

mas lhe jogam tantas críticas no rosto,

que sua consciência seu remorso criva...

E lá se vai a infeliz à anorexia,

comendo muito menos que precisa,

achando sempre estar fora de forma.

E o desgraçado vai à academia,

nessa ânsia de manter barriga lisa,

que sua imagem interior tanto deforma!

MODISMOS IV

De um condomínio eu moro até bem perto.

São bem tranquilos os seus moradores.

Não há gordos ali, nem comedores,

todos imóveis no apartamento certo.

Durante a noite, em geral, fica deserto.

Poucos visitam, só os mais sofredores,

salvo em Finados, quando os velhos mores

ainda segue quem a eles está desperto...

Faz com que venham centenas e milhares

a comungar com os ossos ressequidos:

até os mais gordos já emagreceram...

E quem os lembra, geme seus pesares,

sem recordar-se, das dietas desnutridos,

que esbeltos mesmo são aqueles que morreram.

AGUARDO I (24 JUL 11)

Eu devo agradecer, Senhor, por este dom

seja o teu nome Dionyso ou Jeová,

Vishnu ou Shiva, Apolo ou mesmo Alá:

a graça concedeste e sei que és bom!

A ti Calíope, musa antiga, em igual som;

Ildaba ou Inanna, que no Oriente já

se veneravam, enquanto o Egito está

ainda imerso em barbaresco tom...

Qualquer que seja o nome que Te deem,

meu deus Altíssimo, davídico Elshaddai,

por toda a inspiração eu te agradeço;

sejas Demiurgo ou Grande Mãe também,

cada poema que de minha pena sai

de ti provém e humilde o reconheço.

AGUARDO II

De publicar jamais tive intenção,

por não perder o dom da maravilha.

Segui ao longo de minha longa trilha,

cantei os cantos da pura encantação.

Acreditei na crença da visão

de que o líquido jorrado dessa bilha

facilmente alcançaria quanta milha

necessitasse para tal reprodução.

Que os versos realmente mais saudáveis,

quais espermatozóides, abririam

os óvulos da própria aceitação.

E assim espero que deuses formidáveis

de editoriais tronos de luz ainda sorriam

no sacramento de sua publicação...

AGUARDO III

Pois acredito que a força do poema

e a forma como expressa sua saúde

não se encontram no esforço que amiúde

é dispendido por gente tão pequena

que por se ver impressa se despena...

E depois, sobre os amigos, como grude,

empurra livros de que o valor se ilude...

Minha abordagem é muito mais serena.

Se versos têm valor, que se publiquem!

Que de editores chamem a atenção,

que se disponham a lhes dar valor que têm,

que busquem os destinos que os indiquem

para quem deles partilhe essa ilusão,

no mesmo instante em que seus olhos leem.

AGUARDO IV

Contudo, se foi Deus que me inspirou,

não cabe a mim enterrar esse talento,

que até hoje me espanta esse portento

de tanto verso que de mim jorrou...

Que não são meus, a boca já afirmou,

porém pertencem a quem o sentimento

é capaz de atribuir-lhes julgamento

igual àquele que dos céus brilhou.

E assim, eu não escondo. Distribuo

somente entre os amigos e parentes,

sem desespero por reconhecimento.

Não os amarro no lenço em que hoje suo,

nem os exponho a olhares complacentes

mas da parábola aceito o mandamento.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 30/07/2011
Código do texto: T3127926
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