LENTE DE AUMENTO & MAIS
lupa I
nem sei se poderia, de fato, acompanhar,
com velhos olhos gastos tantos signos.
não vejo jeito de tornar benignos
os longos dias que passo a revisar,
sem ter prazer,
por puro esforço,
as traduções que fiz, buscando erros:
ler e reler,
dores no dorso,
só na folia do verso a refugiar,
nos disfarces mais podres e mais dignos,
em falas brandas e vazios malignos,
que me permitem viver, sem nem notar!
lupa II
mais um formato estranho é sugerido:
meu coração ferido
já tem rido
muito mais que meu viver justificou.
assim cantou
e dessangrou
no inútil verso que nem foi poema,
na murcha flor que não foi açucena,
na opacidade da angústia que envenena,
na vida morta dos corações rasgados.
lupa III
este barulho não me vem daqui:
vem de outra parte do mundo
e nem pertence
àquele som por vezes iracundo,
àquela vida que, às vezes, assisti,
mas que não vence.
esse fragor não vem de mim:
apenas ouço ao recruzar a rua
e não me atenho,
pois não me evoca uma esperança nua,
nem me parece revelar, assim,
por que aqui venho.
esse ruído pertence a outras pessoas:
escuto de passagem, impoluto
e nem me agito,
embora nos ouvidos me ressoe,
eu ouço apenas, nem sequer escuto,
tão forte grito.
lupa IV
estou apenas adiando este momento,
em que terei de iniciar o movimento,
a deslizar pela fresta o pensamento,
a deslocar para o fundo o sentimento
uma vez mais
no meu jamais,
me prostituo, sem arrependimento:
tal é minha vida
e dou guarida
nos meus neurônios, sem comedimento,
às ideias de outrem, em travestimento,
que verto ao português, em desalento,
na espera crua de um mísero portento.
lupa V
desta forma, o poema é reticência:
pode ser tudo ou nada, em empatia.
de teus anseios a plena antipatia,
pelo desprezo de toda a tua sapiência,
ou descaso profundo do que és.
junto a teus pés
eu o deponho.
talvez julgues meu discurso como ofensa
ou o encares com ressentimento.
feio portento
que um ao menos
te disponhas a provar de meus venenos.
mas lembra sempre que o verso não é meu
e nele provas um veneno que foi teu.
lupa VI
se não te serve
a plenitude da quimera que conserve
intacto o bagaço de teu sonho vão,
se não te basta o vácuo no ausente coração
[nada melhor que o vazio a preencher o nada],
toma a bênção desfolhada
e faz dela rodízio
e dá-lhe pleno homízio.
na implosão da alma,
revive a alheia calma
da plena desistência.
preenche teu vazio com ramos de impotência,
ascende a escada fria que te conduz à lua,
espalha tuas entranhas nas pedras desta rua
até ver-te completa,
em plena obsolescência.
DEMISSÃO I
hoje pretendo
dar aviso prévio
a todo amor que traga ao coração
que vá embora depressa esta ilusão
que sem motivo está me perturbando
amor do amor apenas denotando
relatando relutando
incomodando acomodando
cantando ecoando
vou acordar a aurora
à meia-noite
não tendo mais lugar em que me acoite
a noite amiga transformou-se em açoite
por isso quero o sol da groenlândia
seis meses brilha ao norte dessa escândia
islândia eislândia
irlândia eirelândia
laplândia lapolândia
ao meio-dia porém
eu quero a treva
que me impeça aproximar-me da janela
ardem caixilhos embaixo da panela
cozendo a carne de minha musa ausente
fritando os dedos em gesto onipotente
onipresente onipresente
prepotente prepotente
pente dente
ao meu alvitre
não há destino
mas quando ouvir as doze badaladas
sei que não foram por mim desperdiçadas
são doze horas de coagulado canto
que sempre serve como rima para pranto
paraponto paraponto
pesponto pesponto
ponto ponto
FLICTEMA I
(bolha)
persigo, sorridente,
a voz do sonho:
à morte chamo filha e companheira:
tantos filhos eu fiz, em longa esteira,
quantos deixei morrer em vãos escuros,
na impiedade dos pensamentos puros,
perseguros perseguros
inseguros inseguros
gurus gurus
versos de nada,
na seclusão,
tenho uma pilha morta no escritório,
tem um valor somente emunctório,
na falta de melhor composição,
tardios frutos da ejaculação,
mil versos são mil versos são
malversação malversação
da inação da inação
nem eu entendo
porque tal ritmo
que me arde como bolhas nas pupilas,
pestanas se arreganham nessas filas
de palavras estóicas e sem nexo
que me deixam fremente de perplexo
interconexo interconexo
desconexo desconexo
sexo sexo
em revoada
bica minha alma
e cada pássaro leva sua migalha,
perfurada qual filó essa mortalha,
que envolve o coração em sacramentos
do maculado enxoval dos paramentos
parlamentos parlamentos
de lamentos de lamentos
bentos bentos
FLICTEMA II
urgente a urina
escorre em ouro
nos filamentos ágeis do desdouro
no verdigris dos dedos, lavradouro
da saga morta umedecendo os versos
que escorrem pelos dedos, redispersos,
predispersos predispersos
dispersos dispersos
terços terços
tais sombreiros de luz
são califormes,
na tinta negra escorrem como ourina,
os versos vesicais da triste sina,
a displasia da morte impenitente,
encardida ante um deus indiferente
complacente complacente
à reverente à reverente
frente frente
escorrem versos
como absurdos
ardem nos dedos como quem cistite
sofre no ventre por malapetite,
às avessas de nutrir-se do alimento,
mantendo na albumina o pensamento
e é de pensar,
nos lugares que frequento
que flui o sangue em ouro de meus dedos,
vermelha urina de sutis degredos,
azulada tristeza de caligem,
gama inútil das dores que me atingem
e a virgem e a virgem
impingem impingem
tingem tingem
CEPAS DE LUA I
eu sou veículo,
tão automático,
como a causa incausada cria a Terra,
como sem causa o homem cria a guerra;
qual bactéria provoca a infecção,
retalho fibra a fibra o coração
inquietação inquietação
quietação quietação
tração tração
num tal impulso
se me abre o pulso,
na tendinite dos versos marchetados,
pela linfa das feridas consagrados,
esses versos porejam como pus,
minhas entranhas e nervos estão nus
doce alcaçuz doce alcaçuz
dos guabijus dos guabijus
na luz na luz
e não controlo
o estranho fluxo:
sou como estrela que em brilho se irradia
e se desfaz no fulgor de sua energia,
mas caso não brilhar, não sou estrela
e pode haver, talvez, morte mais bela?
e a sentinela e a sentinela
sob a janela sob a janela
gela gela
furado o peito,
o meu fantasma escorre,
na multidão do vício solitário,
na solidão do ordálio multifário,
no dicionário, sou ladrão de tumba,
mas é a meninge de meu crânio que retumba
e a catacumba e a catacumba
profunda profunda
afunda afunda
CEPAS DE LUA II
você que me lê,
falando sobre a morte,
não conclua que isso seja obsessão,
somente que das nuvens o trovão
nos ronca, generoso e coriscante,
no seu mapa de foice triunfante
da negra amante da negra amante
o delirante o delirante
infante infante
teimosamente,
se insere a ideia,
não é que eu queira criar um novo norte,
nem triunfar sobre azar ou boa sorte,
a morte vem e vai, nessa sansara
que me completa e que me desampara
antepara antepara
compara compara
e para e para
eu me sinto obsedado
é pela vida,
que mata os sonhos logo que acontecem,
que trucida meus versos quando crescem.
tenho um patíbulo sobre a escrivaninha
de originais. a pilha se avizinha
do meu telhado do meu telhado
meio estilhado meio estilhado
de mau olhado de mau olhado
e nesta obsessão
eu nunca posso
passar a limpo a vida em que empilhara
tantos planos e projetos. nem trilhara
tantos caminhos que desejaria:
do teto a pilha me canta uma elegia
em romaria em romaria
de sintonia de sintonia
fria fria
CEPAS DE LUA III
em palavras esfarinho
calcários sentimentos
depois de bem ralados, tomo sal,
ovos batidos, manteiga natural,
açúcar e canela e faço sonhos,
porém não sei fazer, saem medonhos
derrisonhos derrisonhos
risonhos risonhos
sonhos sonhos
se justifica até
sua abatumabilidade.
se fossem melhor feitos, deixariam
de ser sonhos e concretos se fariam,
até quem sabe partejando seus afanos
desenganos desenganos
haraganos haraganos
enganos enganos
se permanecem,
porém, apenas sonhos
que nem sequer procurem vir à luz,
seu recheio polvilhado mais seduz.
não se destinam, afinal, a ser vividos,
são sonhos, de fato, sonhos cridos,
sonhostidos sonhostidos
retidos retidos
tidos tidos
pois nunca no concreto
sonho ideal se realiza,
que não passa de um espectro desconforme,
projeta lanças de cor, é dardiforme,
mas abstrato é sonho verdadeiro,
quanto mais quando apenas passageiro
seringueiro seringueiro
parelheiro parelheiro
oleiro oleiro