COMPLACÊNCIA & MAIS
COMPLACÊNCIA
E, de repente, eu sinto-me esvaziado,
sem sequer a esperança desejar...
Voltei a meu passado e trabalhar
é meu único alívio... Estou cansado
de querer e não ter e até de querer ter.
É coisa tão monótona a esperança!...
Melhor não querer nada e ter confiança
de que nada é garantido receber...
Pois tudo nesta vida tem seu preço:
até a boa ação, sempre se paga
e o preço da esperança é bem amargo.
Assim, à esperança eu ponho embargo.
De meu desejo não me compadeço
e aceito inerme o quanto a vida traga...
DE REFLEXOS PERPLEXOS
A vida é fruto de séries de abandonos...
Escolhas que fazemos sem querer.
Escolhas que queremos escolher.
Escolhas realizadas em ressonos...
Escolhas do inconsciente, nas quais somos
vida sem dono, jogada entre os abismos;
vida perdida permeio a cataclismos;
vida forçada sobre nós... E pomos
nossos anseios sempre a combatê-la;
nossos desejos sempre a esperá-la;
a morbidez, enfim, sempre a temê-la.
E na vida consciente, a dilui-la,
na tentativa inútil de domá-la,
nossa vida consciente a persegui-la...
DEPÓSITO
Direitos eu não tenho de pedir-te
que permaneças minha... Que fiel
me sejas sempre... Que hidromel
me jorre de teus dedos... Que o destino
seja cambiado pela glória de sentir-te
bem próxima de mim... Que, sem aleivosia,
possa então partilhar de tua elegia,
na taciturna luridez do desatino...
Não posso te pedir que permaneças
sempre a meu lado, enquanto dura a vida,
nem sequer sugerir que não me esqueças...
Porque nem sequer sei se permaneço
fiel a ti até minha despedida,
pelas mil vezes que a cada dia te esqueço.
ESTIMATIVA
É claro que, sem ti, eu viverei.
Não vou morrer de fome ou me finar...
Como os jovens da lenda, que a penar
se deixavam morrer... Continuarei
em minha vida, tão cheia de cuidados:
obrigações nutridas dia a dia...
Eventualmente, tua voz eu ouviria
e sentimentos mandaria, alados
até teu coração, mas sem sorrir,
sem sequer manifestar qualquer desejo,
nem querer apenas o teu beijo
como qualquer na face há de sentir...
Pois seguirei mascando minha saudade
de um bem que nunca tive de verdade...
INTERAÇÕES
estou castrado. Já nem sei que versos
conseguiria hoje te escrever.
Preferiria nunca mais te ver,
nem captar teus sonhos tão dispersos.
Porque te mudas tanto para mim!
Às vezes, estás próxima e agora
tua boca é doce para mim, embora
não sei se inda amanhã serás assim.
Ou se me mostrarás tanta amargura,
na comissura dos lábios descaídos,
que nem sequer te poderei beijar.
Tal como a vida inteira fosse agrura...
E, nunca mais, teus olhos malferidos
erguesses, doces, para me fitar...
MEMORIAIS
Eu canto a gama das emoções humanas,
que me perpassa o espírito, solerte.
Não sentimento que o coração me acerte,
mas compreensão das culpas sufragâneas,
que os outros atormentam... Tais arcanas
culpas vazias, que a mente mal desperte
para assumir... Por mais que desconcerte
a presença dessas penas subitâneas...
E canto esses segredos, nunca meus,
que encontro escusos em sujos escaninhos,
pendurados em mim, por velha herança
de meus antepassados... Ou que Deus
permitiu-me redimir de meus mesquinhos
sonhos desnudos de qualquer lembrança.
ALOCAÇÃO
porque, enfim, o pecado é verde flor,
tomada a esmo e que nunca amadurece.
o verdadeiro prazer sempre se esquece,
enquanto a culpa é permanente ardor.
bem sei que tudo morre e que apodrece,
se biodegrada, desfaz-se no vigor
que novo nascimento, multicor,
faz rebentar e, assim, nunca perece.
se existe mérito em contexto de pecado
e o bem mais seja que súbito e ilusório
reflexo invertido e fantasmal,
todo o usufruto vem da transitória
carne roubada aos corpos do passado,
nessa ilusão de vida individual...
ENFADO
Estou cansado desta vida e vejo
a pilha de trabalho a avolumar.
Queria não mais ter de mergulhar
na busca inglória do mais vão desejo.
E, no entretanto, é tudo quanto tenho:
esse trabalho é todo o meu prazer.
Eu me endorfino ao toque do dever,
após cumprido e então não mais desdenho
a vida inglória e tão atarefada;
as metas que me imponho, diariamente;
e os imprevistos que solapam metas...
Porque este meu espírito mais nada
aceita enfim, nem deixa estar presente,
do que tarefas cumpridas e completas.
FINADOS
muita vez o que mais dizer queria
não ouso consignar em meus sonetos.
há sentimentos por demais discretos,
que apenas redigi-los feriria
o mais profundo cerne de meu ser.
eu bem quisera encher-me de coragem
e expô-los sem receio, na mensagem
pura e sincera, que desse a compreender
que já senti o quanto neste agora
punge tua alma; e a meu irmão de outrora
feriu, tão certamente como eu vivo.
e como vives tu: somos um só.
se nesses versos ainda estou ativo,
tu, ao me leres, aspiras o meu pó.
VERSOS INSEPULTOS
Vejo crescer a pilha dos poemas
que não passei a limpo, pobres linhas...
Que nem recordo mais de quando tinhas
meu coração perdido entre teus dedos...
E me fizeste criar preciosas gemas,
que já perdidas foram, pobrezinhas,
que não as engastaste, quando minhas
confissões escutavas em segredos...
Porém não retribuías: teus sorrisos
mostravam teu prazer, mas não tua alma.
E nos teus olhos cintilavam guizos...
Enquanto de tua boca só brotavam
perfumes desbotados, fúria calma,
que embora falsos fossem, me inspiravam.
TRANSMIGRAÇÃO IV
Já são muitas semanas que esta musa
mudou-se para rua arborizada,
onde a buzina falseia a cornamusa
e o braço alcança o cheiro da alvorada.
Esperava, talvez, a vida nova,
deixados seus problemas após si,
sem compreender que o sonho não desova
em diverso lugar, sem frenesi,
que o impulsione a gerar nova ilusão...
Assim, em novo bosque faz-se dríade
e até percorre a floresta multifária...
Em que se arrisca a partir o coração,
pois é preciso lembrar que uma hamadríade
sempre padece uma vida solitária...
A FILHA DE APOLLO XIV
Eu preenchi meus pés de solidão,
pois não posso seguir para onde estás.
E mergulhei minha língua em sassafrás,
para afastá-la do miasma e podridão.
O que amo é tua mente, com certeza,
portanto, a diferença é indiferente.
E a distância é tão só circunjacente,
porque a devoro na maior pureza...
E pouco importa que o corpo bem distante,
ou fora dos padrões, ou até disforme,
se manifeste assim, de estranha sorte.
Pois meu desejo é o espírito vibrante
que habita em ti e que na carne dorme,
mais pétreo que o cimento e inda mais forte!