FILHA DE APOLLO XIII & MAIS
A FILHA DE APOLLO XIII
Tu te afastaste e sinto qual se o peito
tivesses me arrancado. Os eixos de uma roda
são minha cabeça, pernas, braços, um perfeito
círculo vazio, em que circula toda
a linfa que me resta, preenchendo,
em esguichos ambarinos esse espaço,
porque meu sangue, por ti removendo,
já se esvaiu e nem me resta um traço
do amor que tive outrora. Sou apenas
esses membros de palha, ligados por arame.
em pentágonos inscritos. O ventre me palpita
e não tenho pulmões. O coração se agita
aos pés de ti e assim, de longe, me condenas
ao sibilar do vento que a alma me reclame.
INQUÉRITO
Acaso existe vida após se ejacular?
Não a vida dos outros... Digo, a nossa.
Para uns é semi-morte; e descansar
é necessário, antes que a gente possa
abrir de novo os olhos, quanto mais
erguer-se e retomar qualquer atividade...
Para mim é diferente. Não me cansei jamais,
mantendo-me desperto, tranqüilo e sem vaidade.
Fazer amor é meigo... ou violento. Espero
encontrar alegria... Nem sei o que é depressão
pós-coital, qual mencionam, com voz cheia de pasmo.
Pois quando os olhos abro, suspiro e apenas quero,
depois desse desmanche, depois dessa explosão,
saber se existe vida após um tal orgasmo...
DENERVAÇÃO
Pela medula me escorrem fios de ouro
de mielina; e surgem mais versos para ti.
São os meus nervos frágeis que esqueci
de resguardar em câmaras de couro.
E assim, derretem-se e apenas paralizam
meu corpo sem controle, que este esgar
apenas representa o ardor sem par
das fibras escorreitas, que deslizam
em direção a ti, pois querem te prender
em cefalorraquiano conquistar,
para que nunca fujas mais de mim...
São minhas meninges neste percorrer:
a pia e a duramáter vêm assim,
a própria aracnóide a desfiar...
AMOR DE CÂMARA XIV
Sempre que estou contigo, dentro em mim
ressoa o acorde de estranha melodia.
Por vezes, nem recorda uma harmonia...
Por vezes sei, quanto eu escuto assim...
É como se teu rosto, se teus olhos
criassem pentagramas em meu ser.
Ao te beijar, escuto a reviver
sabor de onda a esbater escolhos...
E retorno tal música a escutar
e nela encontro singular abrigo,
porque sinto de ti tremenda fome...
Ela me leva ao passado e a pensar
só no prazer de, quando estou contigo,
fazer amor ao som desse Albinoni...
PERSISTÊNCIA
(ao Pastor Iblecy Skilhan Martins)
Estranha coisa é nossa vida humana:
quando parece menos merecermos,
encontramos o mal. E, se nos dermos
à rebeldia ante a mente soberana,
seremos entre os infiéis contados,
pois cedemos à revolta, sem pensar,
para a vontade divina recusar,
sempre que formos por ela maltratados.
Mas nela encontrarás bênção também,
no próprio ato em que te provará,
que vencer poderás quando te esforças!
Pois da promessa sabeis muito bem:
Deus é fiel e não permitirá
sejais tentados além de vossas forças.
INCUNÁBULO
Para ficar contigo, abdicar posso
da condição humana e até da vida
animo-vegetal, em que guarida
ser julgo apenas ter e habitar nosso
espírito vivaz de movimento.
Posso fazer-me objeto que tocares
irás e apreciarás, para guardares
junto de ti, em meigo pensamento.
Meu coração a bater descompassado,
submetido ao feitiço desconforme
do encantamento contido em alfarrábios.
E eu me vejo, assim, transmogrifado
em baccarat, em taça sediforme,
que mal alcança a comissura de teus lábios.
[incunábulo é um livro antigo, em geral impresso ou manuscrito antes de 1500 e também um termo para fraldas de bebê, também se referindo ao início remoto de qualquer objeto, ser ou evento.]
PRIMAVERA SEM PRAGA I
Hoje completo meus sessenta e três
e não percebo grande diferença
de quando tinha só quarenta e três:
decerto a vida inteira me compensa...
Ao fazer um exame de mim mesmo,
[mesmo um exame lírico, de fato],
vejo que o tempo me passou a esmo,
sem se mostrar sensato ou caricato.
Barba e cabelos brancos, os que restam,
porém o rosto é liso como antes.
Trabalho e ando nestes meus sessenta,
qual se trinta tivesse e sei me aprestam
os deuses e o destino, tal que dantes,
surpresas novas para os meus setenta...
PRIMAVERA SEM PRAGA II
Vejo meu corpo quase igual que antes:
guardo meus músculos, se bem que não tão fortes,
por falta de exercício, mas sem cortes
permanecem a mente e a alma delirantes...
[De fato, trago um problema ao tornozelo,
que torci há seis meses, como dantes.
Sempre teve a tendência de a meu zelo
de caminhar contrapor suas inquietantes
torções, com que nunca me importei.
Segui minhas caminhadas, mesmo inchado
ele estivesse... E logo se emendava.
Mas desta vez, por mais que me esforcei,
inda me dói às vezes... Ou quebrado
foi nesse mês -- ou a velhice me espreitava!...
SCORTA ERRATICA
A pele como um lírio, os lábios liqüefeitos,
de cristais petalados os olhos inocentes,
as pálpebras cerradas, por vezes tão freqüentes,
ao se chegar a mim, os rutilantes leitos
das orelhas, para o sono de meus versos,
a língua a retraçar perfumes de carinho,
até mesmo o nariz, que arfava de mansinho,
ao escutar de mim os sonhos mais perversos.
Rosto de anjo, em todo o seu encanto,
até que o assentimento me chegasse, enfim,
à deprimente conclusão arguta...
Em minha mente, enrugada pelo espanto:
que essa mulher chegasse para mim
pura de carne; e, em mente, prostituta.
ALFINETADAS
Se te farei sofrer, não quero mais
o meu amor de víbora, a peçonha
que em ti derramo, nesse amor que ponha
o meu prazer, sem retribuir jamais...
Se dor já te causei, é por demais
contrário a meus anelos: que disponha
trazer a meu amor quanto se sonha,
centelhas de ilusão em mil torchais...
Pois sempre foi o que mais me atrapalhou:
que ela sofresse dor, enquanto dava
o gozo multifário e me aliviava,
por um breve momento, o meu sofrer...
Mas que prazer terei, se não lhe dou
êxtase igual ao que me faz viver...?
O ADEJO DOS FINADOS
Eu faço amor com ela e, em seu regaço,
busco repouso de minhas inquietudes...
Mas não transcorre assim: surgem taludes,
que me separam, por imenso espaço,
dessa tranqüilidade em que me escudes,
inquieto coração. Surgem fantasmas,
que me contemplam enquanto tu me espasmas,
por mais que à calma devolver-me iludes...
É qual se multidão nos contemplasse:
fauces hiantes, focinhos contorcidos,
esgar de gozo a corromper tecidos...
Qual se do próprio orgasmo só intentasse
participar, em tons de zombaria,
a mesma multidão que se reunia...