AMOR DE CÂMARA IX & MAIS

AMOR DE CÂMARA IX

O vento sopra agudo e a voz do sino

se espalha, em tom plangente, na alvorada.

E eu mal dormi, não me conduz a nada

esse tinir dolente em meu destino...

O que eu escuto são apenas sons da noite:

um trem ao longe, um galo, uma zoada

de pássaros despertos... A revoada

das luzes da cidade, em claro açoite...

Mas no instante em que tomo entre meus braços

um corpo cálido de mulher amada

e derramo meus olhos em seus traços,

tudo demuda em dulcíssima alvorada:

o vento canta e brando o sino tine,

fazendo amor aos acordes de Puccini.

AMOR DE CÂMARA X

Amor pequeno e raro, amor distante,

Amor de ária singela, orquestração

eventual de cavatina, sem brilhante,

a reluzir tão só no coração...

Amor de pobre, amor bem pequenino,

que apenas de relance satisfaz...

E após deixa um ressaibo, um travo fino,

dramático em sua dor, sem trazer paz...

Amor assim, baseado em melodia,

na pureza da voz, rouca elegia,

que o peito alegra, em tal desesperança...

Amor de longe, enfim, que mal se alcança,

Amor de carnaval, amor confete,

fazendo amor ao som de Donizetti...

CASULA [thanks, Cabell!...]

Amor conjectural, amor romântico,

amor que só se alcança ao não se ter...

Amor pelo impossível de esquecer,

amor em vasto orgasmo oniromântico...

Que desdenha da posse: antes prefere

não ter a substância da mulher,

para melhor imaginar qualquer

sonho dourado que a alma refrigere...

Amor assim: isento de promessas,

sem pensamentos vãos, sem alianças,

que os dedos prendem e as almas deixam soltas...

Vivendo essa ilusão, vivendo dessas

migalhas consumidas de esperanças,

porém fiel no ardor que as traz envoltas...

AMOR DE CÂMARA XI

Eu nem me esforço por teu amor concreto.

Abstrata, és mais real. Posso forjar-te

segundo a síntese de meu ideal secreto.

Enquanto a substância, ao contemplar-te,

Se escapa a tal prazer sob as pupilas...

E, no entretanto, quando enfim te abraço

E nesse teu ardor, por mim cintilas,

Teu dom carnal preenche todo o espaço...

Como endorfinas então o meu marasmo!

Tal como a música, teu corpo me consola,

Durante os dias bons e os dias maus...

Pois me renovo em ti, em tal orgasmo:

Sempre é um antídoto, nesta vida tola,

Fazer amor com a música de Strauss...

NOVILÚNIO [merci, Aznavour!...]

Eu preferia que saísses de minha vida,

do que te ver, sempre distante assim...

Apenas retornando, inadvertida,

quando pouco te espero e já no fim

de meu amor por ti até me achava...

Ao te ver longe, enfim, tão afastada,

qual uma sombra inconsútil que sonhava

em ser sombra de sombra, ensimesmada.

Mas quando me retorna, inesperado,

o teu sorriso, tua voz, antes omisso,

eu não consigo te esquecer jamais...

Sabendo bem que outra vez será afastado,

sem que entenda o motivo. E é só por isso,

que até queria nunca te ver mais...

AMOR DE CÂMARA XII [thanks, Nevin!...]

Teus beijos, para mim, são como pérolas

ensandecidas no fado dos desejos...

São colares de preces, esse beijos,

intercalados de ausência, como férulas...

Que me azorragam e me deixam pálido,

inconseqüente, embora em vezo permanente.

Teus beijos são sonidos, são fremente

cintilação de carne, nesse inválido

fulgor. Que em tais momentos, feitos loucos,

todo o concreto se transmuta em ilusões,

por mais me agrade teus gemidos escutar...

Misturados aos meus. Suspiros roucos,

que para mim ressoam quais canções,

fazendo amor com Schubert no ar...

AMOR DE CÃMARA XIII

Eu sinto a solidão como a palpável

parede de sorrisos de indulgência

com que encaro o mundo, essa paciência

de longanimidade imponderável.

E vejo o mundo assim, tal qual miragem

de demiurgo talvez... Em que me insiro

como observador... Em que me inspiro

ao descrever dos outros a passagem.

Nesse favor com que a mim mesmo acorro

e beijo a própria imagem, que me beija,

nos permanentes amores transitórios...

Que então me levam a buscar certo socorro

nos braços de quem sei que me deseja,

amor fazendo aos acordes de Praetorius...

AS JOVENS DE ROMA LVI

URBICA

MEU SANGUE É CLEPSIDRA AO FLUXO DO AMOR

PERCORRIDO NO TEMPO: ARTÉRIAS, CAPILARES,

AS VEIAS, ARTERÍCOLAS, OS DUCTOS BILIARES,

AS HORAS MARCAM DIÁRIAS AO SOM DE TEU CALOR.

MINHA MENTE É QUAL GNÔMON, AO TOQUE DO SORRISO,

QUE BROTA DE TEU ROSTO, CAMBIANTE COMO O SOL:

AS MARCAS QUE PERCORREM NEURÔNIOS DE ARREBOL

ATÉ DO OCASO AS SOMBRAS E À LUZ FEITA DO SISO,

QUE ÉS ORA PARA MIM, EM TAL SIGNIFICADO

DE VIVER MARCHETADO DA FÉRULA DE ANTANHO,

SEM VALOR, APAGADO NA SAGA ROTINEIRA,

EM QUE AVENTURA É UM TOQUE, APENAS COMPORTADO

NAS PÉTALAS DOS SINOS, NO CARRILHÃO DO AMANHO,

DA PRÓPRIA CARNE EM DOBRE NA HORA DERRADEIRA.

AS JOVENS DE ROMA LVII

FELICITAS

À NOITE A VEJO, AGUANDO SEU JARDIM:

FALTA ÁGUA EM ROMA E SÓ NOS VEM À NOITE.

ELA SE ABRIGA BEM, DO VENTO TEME O AÇOITE

E APENAS DE RELANCE ACENARÁ PRA MIM.

MIL VEZES PREFERIA DEIXASSE-ME REGÁ-LA,

AO INVÉS DE QUE ME ACENE UM GESTO INDIFERENTE.

BEM CERTO QUE ESSE AMOR JÁ SE SONHOU FREQÜENTE

E HÁ MUITO JÁ NÃO É PAIXÃO QUE ME AVASSALA.

MAS POR CERTO EU A QUERO AINDA JUNTO A MIM,

COMO UMA FLOR ABERTA, COMO UM IDEAL CORIMBO,

EM QUE PUDESSE DE NOVO LEVAR O AMENTILHO

E SOPRAR EM SUAS TROMPAS E BATER O MARIMBO,

QUE RESSOA A MINHA VOZ E ME REPLICA, ASSIM,

NUM MULTICOR AGUAR DE PURPURINO BRILHO.

AS JOVENS DE ROMA LVIII

VETTIA

SE OS DEUSES ME AJUDAREM E ME DEREM

O QUANTO LHES PEDI (E DIZEM DO PERIGO:

ENTRE OS ROMANOS É UM DITADO ANTIGO,

DE FAZER UM PEDIDO ENQUANTO ESPEREM

PELAS NUVENS ANELADAS QUE O ÉTER EMACULAM,

A COCHICHAR SEGREDOS ENQUANTO NOS ESCUTAM

E A ATENDER AS PRECES, RIDENTES, NÃO RELUTAM,

POR MAIS QUE BEM E MAL CONJUNTOS NOS ANULAM).

ELES RIEM, OS DEUSES E AS PRECES NOS ATENDEM:

FOMOS NÓS QUE PEDIMOS DESEJOS INSENSATOS,

EXTREMA E ARDENTEMENTE, SEM SOPESAR QUALQUER

EFEITO NEGATIVO... E TODAVIA, COMPREENDEM

QUE ESTOU PRONTO A PAGAR POR TAIS PESOS INEXATOS,

SE APENAS CONSEGUIR GUARDAR ESSA MULHER...

JOVENS DE ROMA LIX

LAETITIA

SEU NOME JÁ TRAZIA A BÊNÇÃO E A PROMESSA

DE TAL ERUPÇÃO QUE AO PEITO BROTARIA,

DE INCONTIDO PRAZER, NA FORÇA DA ALEGRIA

QUE ME TRARÁ, SE APENAS, SEU ROSTO NÃO ESQUEÇA.

E SE ME RESPONDESSE, EM SIDERAL VAIDADE,

A CADA VEZ QUE A PENA CORRESSE EM PERGAMINHO,

QUE MEU FOSSE O DESEJO, QUE MEU FOSSE O CARINHO

E REBROTAR FIZESSE EM MIM FECUNDIDADE,

FELICIDADE, ENFIM, É QUANTO ME DARIA,

SE AO MENOS SEU OLHAR FUGAZ ME RELUZISSE,

NUM MOMENTO DE AMOR, UM SÓ MOMENTO APENAS.

E ENQUANTO INDA VIVESSE, JAMAIS A ESQUECERIA,

SEU NOME APAGARIA MINHAS DORES E MINHAS PENAS,

SE POR UM SÓ MOMENTO SEU ROSTO ME SORRISSE...

FEROMONIA

Foi dito que moedas lançássemos na urna,

neste primeiro ano de nosso amor recente,

sempre que amor fizéssemos e que a musgosa furna

se achasse visitada pelo regato ardente...

Foi dito que a seguir, nos anos posteriores,

moeda retirássemos a cada encontro novo.

Que, por mais que vivêssemos abraços ulteriores,

jamais se esvaziaria tal vaso, que o renovo

de tal amor se torna mais escasso,

na medida em que o tempo nos corra indiferente...

Sempre me estranha foi a tal afirmativa,

pois os anos se passam e sinto-me devasso

a cada vez que vejo o meu amor crescente

e nossa ânsia de cópula se torna rediviva...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 04/07/2011
Código do texto: T3075788
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