A TUA PRESENÇA

A tua presença está de tal modo impregnada nas coisas que, mesmo que eu o quisesse, não me haveria condição possível de esquecer-te

Na paineira da praça em frente

Nos fados

Nos tangos

Nas modinhas

Nas guitarras

Nos violinos

Nas flautas

Nas oliveiras

Nos poemas de todos os tempos

Nos lobos dos contos de fadas

Nas florestas imaginárias

Nas quermesses da infância

Nas fotos

Nos quadros

Nos filmes

Nos silêncios

Nos nomes das tuas filhas

No vinho

Nos licores

Nos teus esquecimentos de mim

Nas tuas ausências de perdão

No amor das outras mulheres por ti

No ciúme delas em mim

No meu ciúme nelas, por ti

Nas madrugadas insones

No que em ti me assusta

No que em ti me deleita

Nas cartas de amor ridículas

Nas cartas de amor não ridículas

No rosto do profeta

Nos selos do apocalipse

Nos países que não conheço

Nos parques

No que nunca serás em ti

No que nunca serei em mim

Nos nossos sonhos parelhos

Nos nossos sonhos diversos

Nos altares das igrejas

Nos medos na garganta

Na sempre distância imposta

Nos beijos não provados pela boca sedenta

Nos crepúsculos

Nos gritos repentinos

No mendigo a dormir na calçada

Na palavra que nunca chegou nem chega

Nos pêssegos

Nas uvas

Na Dor que devasta

No corpo sempre aberto à chegada do teu desejo

No algodão doce

Nas palavras em fúria

Nas imagens de algumas santas

Na garoa mansa

No furor dos ventos

No cansaço das coisas

Na benção do sono

No horror dos pesadelos

Na onda a quebrar na praia

Nos naufrágios

Na Esperança

Nas renúncias

No Sol que aquece

No corpo que treme de frio

Nas nuvens

Nas minhas mãos sobre o ar azul de teu rosto

Nas ausências

Nas velhices precoces

Nas velhices no tempo certo

No tempo que não existe

No teu menino indefeso

No teu Dom Quixote de sempre

Nas tuas outras Dulcinéias

No teu homem zombeteiro

No teu homem indignado

No teu homem de silêncios

No desespero dos suicidas

Nos faróis vermelhos

No girassol

Nas margaridas

Nos teus destemperos

No teu orgulho

Nos teus esconderijos

Nos pássaros grandes

Nos pássaros pequenos

Nos peixes

Nos cavalos alados

Nas pérolas

Nos navios

Nos aviões

Nos meus seios sempre a postos para o teu beijo

No pão saboroso

Nos voos mais fundos

No ventre vazio

Nas estrelas remotas

Na nostalgia de Deus

Em todos os que chegam...

Em todos os que partem...

Em todos os que se partem...

Em todos os que se chegam...

Estás em tudo o que sei e em tudo o que jamais haverei de saber. Estás e és em mim, que nunca sei se sou nem sei se estou em mim.

Sempre a tua presença muito maior do que a minha presença em mim.

Na noite de 26 de junho de 2011.

Publicação no início da madrugada de 27 de junho de 2011.