VÉUS DE TULE 1-12

VÉUS DE TULE I

Eu puxarei teus olhos para os astros

e os farei viver na luna plena:

serão cheios de luz e, qual falena,

adejarão, mesmo que pesem lastros

que me afastem do amor. Erguerei mastros.

em que flutuem espelhos pela cena,

despejando as centelhas de minha pena

e iluminando de minha vida os rastros;

porque aonde pisares, plenilúnio

cintilará do chão em mil castelos,

construídos nas areias da ilusão;

e, desse modo, mesmo no infortúnio

de que não sejas minha, sonhos belos

brotarão de teus passos pelo chão.

VÉUS DE TULE II

Eu te darei um manto de esmeralda,

tecido lentamente pela espuma;

eu contarei as ondas, uma a uma

e um colar deporei sobre tua espalda,

feito de nuvens gris, na estranha calda

dos caduceus do vento, nessa ruma

de estrelas peroladas, nessa gruma

de fios de neve da montanha à falda.

Depois, um par de brincos de rubi,

recolhidos do orvalho no arrebol;

e cada esbelta haste do capim

porei no meu tear, em que teci

o teu vestido nupcial de sol,

para essa noite em que virás a mim.

VÉUS DE TULE III

São sete os véus daquela antiga dança,

na qual se desvestia, nos haréns,

bem sedutoramente, em seus desdéns,

a bailarina a quem ninguém alcança,

antes que os sete véus, essa abastança

que por demais a cobre, em seus poréns,

no rodopio de seus vaivéns,

lance de si, a sugerir bonança...

Só depois de largado o último véu,

é que se mostra propícia a algum abraço,

lasciva e quente do exercício lento...

Tens-me mostrado a sombra desse céu,

em bem mais de setenta véus de espaço,

derviche a redemoinhar meu desalento...

VÉUS DE TULE IV

Foi teu primeiro véu a indiferença,

talvez enfado, quiçá insatisfação,

nesse casual aperto, palma e mão,

pelos preceitos éticos da crença.

Foi essa fase sobremodo intensa,

recusa da primeira comunhão,

olhos perdidos de desilusão,

mente perdida na floresta densa

de teus cabelos, sideral cascata,

estranha como a luz que vem do chão,

essa relva que cresce para baixo...

Esvaziou-se a indiferença, de insensata:

caiu o véu e, em fresta, o coração

mostrou cor e calor, em leve facho.

VÉUS DE TULE V

Depois, foi em girândola desdém,

um véu pluricolor e transparente,

muito mais frio que fora o indiferente,

com muito ainda a ocultar também.

A dança gira e roda e, quando vem,

em minha direção, em surpreendente

rodopio feito de geada, impertinente,

um véu de névoa a sussurrar: "Porém..."

Esse demora mais, foi muito usado,

é quase como carne consumado,

mostrando os olhos em rápido luzir...

Mas tanto gira, tanto vem e vai,

que tal desdém no solo também cai,

numa odalística promessa de porvir...

VÉUS DE TULE VI

Então me chega a apsara, em sua vaidade:

finge não ver, mas olha de soslaio;

do encontro de seus lábios brota um raio,

direto ao coração da humanidade...

Das vastidões da Índia em santidade,

brota sensual um sacramento. Alçai-o

perante os deuses ancestrais. Louvai-o!

Do corpo humano é a religiosidade...

E ela se volta e tantreia seu namoro, *

orgulhosa ao causar tal atração

e satisfeita contempla seu reflexo.

Seu corpo redolente em pós de ouro,

o ventre só entrevisto, em sedução,

nesse arcano ritual que leva ao sexo.

* tantrear = agir tantricamente.

VÉUS DE TULE VII

Escorre o quarto véu, chega o ciúme,

sempre que em outra o homem passa o olhar:

não é que o ame ainda; é por achar

que deva apenas dirigir-se a seu perfume.

E ela dança, no despeito do azedume:

quer os zelos de si própria despertar;

diante de outro volta o seu girar;

pelo canto dos olhos, cuida o lume

que aparece na expressão do pretendente.

Passou o tempo de fazer-se indiferente,

porque é mulher e quer ser desejada...

E em dança rodopia, nos salões,

trocando pares pelas multidões,

mas só por um almeja ser amada...

VÉUS DE TULE VIII

E quando vê tal artifício fracassar,

desprende o quinto véu da malquerença;

em todo o seu pisar se mostra tensa,

agita o corpo em novo mergulhar,

sereia despertada ao maltratar,

ao invés de seduzir, mostra uma imensa

variedade de expressões, sua raiva é densa,

porque, em sua dança, não pôde conquistar;

e ao mesmo tempo, não ousa confessar,

nem sequer a si mesma o sentimento

que lhe borbulha ao peito e, num lamento,

lança de si o véu, a demonstrar

o quanto está em jogo e o quanto vale

seu coração, por mais que orgulho o cale...

VÉUS DE TULE IX

Levanta o sexto véu, deixa de lado

os artifícios, por sinceridade,

seus passos a conduzem, com vaidade,

a adejar mais de perto, sem cuidado,

seu corpo a martelar, descompassado,

as lajes do salão, fatalidade

que assim a atrai para a luminosidade,

qual mariposa ao fogo mais sagrado.

E quando a vejo assim, busco também,

no coração, o sonho renovado,

não sei se conquistando ou conquistado...

Só sei que não desejo mais ninguém,

senão a dançarina inconsequente,

que me prendeu de amor tão insolente.

VÉUS DE TULE X

Cai o sétimo véu, num descuidado

meneio, em impudicícia derradeira:

ela então se desnuda por inteira

e mostra o coração enamorado...

Ainda se quer defender do resultado:

não quer ser desprezada em tal maneira,

a tentativa mostra, de leve e sorrateira,

de os seios recobrir de seu passado...

É então que afirma sentir só amizade,

gostar muito de mim, como um irmão,

mas sem mostrar um verdadeiro ardor...

Porém, num beijo, desfaz-se a falsidade:

explode contra mim seu coração,

na inundação final de nosso amor.

VÉUS DE TULE XI

Só então te abraçarei, huri desnuda,

em plena virgindade renovada,

pela pureza nunca dantes alcançada

deste amor pleno que o coração escuda...

Livre minha alma da antiga crise aguda,

da ânsia milenar recuperada,

jóia de prata em púrpura enrolada,

pingente de cristal que o sonho exuda,

serás meu bracelete e escravidão:

demonstrarei na argola de meu dedo,

nesse símbolo aceito de bom grado,

que da serva do serralho uso o grilhão,

envolto em tule e renda, num segredo,

entre as grades da névoa aprisionado.

VÉUS DE TULE XII

Eu colherei teus olhos, junto aos meus,

todos envoltos nesses sete véus,

que lançaste de ti, olhos de céus,

olhos de terra, olhos que são teus...

E estes meus olhos, já embriagado,

na maravilha de teu corpo e mente,

contigo jazerão, de frente a frente,

o meu reflexo em teu olhar mostrado...

Que em nós se fundirá o velho anseio:

de dois uma só carne, duas metades,

justapostas da maneira que escolhi...

E todo o meu labor terá recreio,

na noite longa dessas saciedades,

em que tornei-me bêbado de ti...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/06/2011
Código do texto: T3020896
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