BRAVURA / EMPECILHO / DESTILAÇÃO / VERGEL
BRAVURA I (01 AGO 79)
Ultimamente, vem-me uma impressão
Que meu desejo antigo e tão potente
Quando alcançado, será indiferente
E tido apenas à conta de ilusão.
Recentemente, eu vejo que ao querer
Basta somente o sonho do querido,
Que se contenta ao meigo som de ouvido
E que se satisfaz com nada obter...
Mas que se negue apenas por querer!
Que não exista sabor de não-poder...
Saber que tudo que se tem querido
Lançar se possa ao reino azul do olvido,
Não por consolo vil de malquerer,
Mas por não mais querer, por ter podido.
BRAVURA II (9 JUL 2010)
Porque basta ao poeta ter querido,
mesmo que nunca conseguido ser
um objeto igual de outro querer,
que é o próprio querer que o tem ferido.
Porque basta ao poeta o som do olvido,
que consigo poderá sempre reter,
enquanto amor se poderá perder
em um momento qualquer de conseguido.
Melhor a sombra que volta de manhã,
que a saciedade desgastada pela noite,
após o beijo pleno ter ganhado...
Por mais que seja, quiçá, muito mais sã
a idéia de um abraço em que se acoite,
junto à mulher que durma ao nosso lado.
BRAVURA III
Amor assim é amor aveludado,
feito de anseio e metade de carinho,
tal amor com que de ti eu me avizinho,
querendo apenas vê-lo consagrado.
Mas eu, poeta, sujeito-me ao espinho
de uma escolha fazer, em gesto airado:
se conservar a sombra do meu lado,
terei inspiração no meu caminho;
porém se a substância material,
entre meus braços, tenha conseguido,
a sombra foge e oculta-se em um canto,
talvez da alma, talvez em manancial,
consigo a transportar sabor querido,
que se trocou por células de espanto.
EMPECILHO I (01 AGO 79)
Melhor viver as ilusões que o mundo
De nós espera em semelhante imagem.
Melhor trincar os dentes de coragem
E nossa carne, em talho bem profundo,
Ir retalhando, à busca do estilhaço
De obus prateado ou verdigris morteiro,
Que o divino feitor, tão justiceiro,
Colocou-nos no centro do espinhaço.
Pois esta dor cruciante, incerta e vaga
É a causa mesma do esplendor nativo
Que à arte nos incita, em brotação;
Que, removendo o ardor que nos alaga,
De nosso heróico ser tão redivivo,
Nós extirpamos mesmo é o coração!
EMPECILHO II (9 JUL 10)
Não vou me submeter à cirurgia
dessa delícia incerta sobre a mente:
vou desejar o aroma diferente
que do gosto de teus lábios me surgia;
que de teus seios apenas refulgia,
num palpitar de beijo ensurdecente,
num reviver de anseio adolescente,
que mente e alma inteiras conduzia.
Eu quero teu amor, em gume puro,
amor de combatente ante a metralha,
amor convalescente dos prazeres
que me prometem teu olhar seguro,
sem cálculo, sem pejo, sem ter falha,
que me libertem da faina dos deveres.
EMPECILHO III
Eu quero teu amor, mais do que tudo,
eu quero essa delícia compassada,
a vara de condão, o dom de fada,
bulício leve de dedos de veludo...
Eu quero tua delícia e não me iludo
que eterna venha a ser ou conservada
mais que em momento de sonho revelada,
mais que em abraço meigo em que me escudo.
Teu corpo eu quero ao meu enovelado,
nessa paina de luz, nesse contato
que me receba sem qualquer reserva;
que seja o teu amor o consagrado
fulgor perene, no perfeito fato
que a glória desse amor assim conserva.
DESTILAÇÃO I (01 AGO 79)
De escuma e esforço eu fiz os meus poemas:
De luz e de saliva e de sangria,
Suores derramados, cera fria
E a linfa das feridas, diademas...
De pele reluzindo de açucenas,
Do pranto negro que do olhar sorria,
Ou da coriza que de mim corria,
Que transformei em doces alfazemas...
Qual lágrima irritando o nervo ótico,
Têm o mesmo sabor amniótico,
De maresia e espuma soberano,
Ao se espalharem assim em tantos fluxos,
Derramados por Vênus, meus refluxos
De adrenalina e líquido raquiano.
DESTILAÇÃO II (12 JUL 2010)
Dizem os gregos que Afrodite, a bela,
não nasceu de algum ventre ou deus algum:
provém de estranho destino e mais nenhum
poderá compartilhar de igual estrela.
Todos se encantam, só de poder vê-la;
é seu perfume transportado no simum
que sopra do deserto e qualquer um,
que o aspire, enlouquece só por tê-la...
Mas esta deusa que brotou da espuma,
não emergiu das ondas, simplesmente,
porém de substância mais vermelha:
foram bolhas de sangue, que se esfuma,
derramado por Apolo da serpente,
a grande Píton, cujo olhar espelha.
DESTILAÇÃO III
Porque toda mulher é serpentina:
com seus anéis a qualquer um envolve
que, tolamente, pensa conquistá-la,
pois é a mulher que a todos nos domina...
Com seu olhar ofídico fascina
e toda independência ela dissolve:
existem presas na boca que nos fala,
com seu abraço controla-nos a sina...
Nascida assim, da espuma da serpente,
cujo sangue derramou-se sobre o mar,
tal como a espuma, está sempre a mudar:
ora rebrilha, em jóia transparente,
ora se agita, no impulso de um momento,
inesperada, como sopra o vento...
VERGEL I (17 AGO 79)
Tapete novo em verde e terracota,
de musgo e relva e turfa perfumada,
os pés descalços na grama revelada,
a deslizar como um córrego que brota.
Depois os dois a brindar por entre avencas
de murta e samambaias e corais,
por uma vez que seja e nunca mais,
dos remorsos se calam doidas pencas.
As flores do retiro, de encantadas
e as vozes a cantar, tornam sagradas
as formas que se abraçam no capim.
E tal tapete se transforma, assim,
em alfombra carmesim de angústia morna,
até que o orgasmo à terra nos retorna.
VERGEL II (16 JUL 2010)
Posso dizer que outro tapete existe,
das rosas perfumadas de Afrodite,
esse tapete que a mais amor me incite,
esse tapete que a mais carinho insiste,
esse tapete que nos meus olhos viste,
de ver que o rosto teu neles habite,
de ver quanto o desejo assim me dite
a deitar-me em tal alfombra que me assiste.
Mas tomaria tais palavras emprestadas,
de mistura com as mais antigas gemas,
que já foi dito o quanto amor quisera:
esse tapete de pétalas rosadas
já foi metáfora em mil e um poemas,
para a caverna rósea que me espera...
VERGEL III
Mas que fazer, quando de amor se fala,
de que tantos falaram no passado?
Dizer apenas que quero do teu lado
permanecer em luto ou plena gala?
Dizer que a inspiração se torna rala,
em busca de outro verso mais dourado?
Amor é tema antigo e renovado,
que só termina quando a vida cala...
E, desse modo, só nos resta embaralhar,
como um tapete verde, essas ideias
e dizer que cada lâmina de grama
é como um sonho a nos aconchegar,
na retomada das gastas epopeias,
que meu amor por ti assim proclama...