Duas Marias
Velhos sapatos1 ,
como aqueles que,
secretamente,
misturaram tintas e
movimentaram os pincéis
de Vincent van Gogh,
estão bem aqui à minha frente;
fazem compras e resmungam,
como um velho casal, as minúcias
dos afazeres do cotidiano.
Não são iguais os sapatos,
um preto e outro branco;
o branco maior que o preto.
- Caprichos, de um sapateiro
sempre a criar moda,
como quem cria mundos!
Caminham rotos nessa vida,
os sapatos;
não querem acordo com meia-sola;
querem-se velhos nessa vida
de tantos caminhos feitos
de pedras e desventuras,
por vezes.
Agora, sapatos velhos,
de tanta entrega, usados;
de tanto amor,
como todos os outros, rotos.
Cabelos brancos,
a vista cansada
da mesma paisagem
no caminho percorrido
a passo miúdo,
para amar,
como os outros!
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1 A escolha do termo cunhado no preconceito corta profundo a língua, mas se impõe aqui como apelo poético