EM BABILÔNIA, CANTO PARA SIÃO

O meu amigo me pede

que lhe fale

sobre seus anos de pastor

pastor de imóveis partidas

pastor de perdidas searas

pastor de uma Pátria nova

Sião às margens do Mondego

da ponte de Santa Clara.

Palavras se quebram

no recesso dos espelhos

e se refazem nos labirintos

calados nos castelos

alguma vida ainda

no ocaso das plantas

rainhas a se debaterem

entre coisas transformadas

e lembranças

esfinges a não morrerem nunca.

O meu amigo

torna-se um antigo entre os antigos

na busca das seivas ancestrais.

Trincando sua ausência

nas bocas

o langor agônico

dos dias de agora

palavras

tocaia para se morrer à mingua,

de excesso,

como escreveu aquele outro.

Eu, nesta Babilônia,

Sião ( para sempre?) perdida

eu sem Pátria a conhecer-me

senão nos olhares onde espelho

a dor sem nome

a dor sem cura

a ausência de mim

em mim, a quem pede o amigo

que lhe fale

de como ecoam os versos

de seus anos de pastor

pastor de pérolas

pérolas por ele próprio

todo o tempo

devolvidas ao mar.

Pedras que em mim se estilhaçaram

não formaram reinos

antepassada que sou

de não sei quê pessoa

nem de quê coisa

a me sobreviver no vão dos dias

onde mal chega

a sombra do Sol.

Rainha póstuma, Inês,

a não saberes da morte

a sempre-viva

colhida em cada espelho.

Inês, a anônima,

viva para trono nenhum

reconhecível

viva para o nunca

cotidiana ferida nas manhãs.

Eu pastora de animais extintos

palavras que se aturdem nas esquinas

eu pastora desta quase impossível fala

na urgência de dizer

de folhas sobrevividas

a cada uma das mortes

também das que não foram anunciadas.

A vida foi se despindo

em todas as formas de morrer

que poderiam ter emergido

ao menos em forma de poesia.

Da terra ergueu-se o Império-do-Não-Dizer

só de sombras de castelos

nascidos em Sonho

Castelos – de – Não - Habitar

na clara idade dos dias.

Desisti há muito

de tentar a enunciação

das formas encharcadas de silêncio

ausências

navios fundamente calados

defronte ao cais

eterno, inacessível.

Ainda conservo o olhar

nas plantas destas pátrias a morrer

e a lembrança de Sião

na vida por um fio

sempre o mesmo precioso fio

a tudo sustentando e em tudo

impossivelmente a manter

a possibilidade do Sentido.

Todos os dias no crepúsculo

O Sol cresce repentinamente muito

antes de desaparecer.

Ao crepúsculo as perguntas

espada a emergir de lagos

em esquecidas pátrias a aguardarem

o eterno retorno do Rei

para a ressurreição do Reino.

O espírito antigo que te sorve e a quem serves

acalenta minha contemporânea solidão

acalenta-me a mim, pastora a não saber

de pátrias, verbos, silêncios.

Sabe-me, sim, a violência das ruas

o medo dos adversários fora e dentro.

Ah, amigo, cuida bem de Sião

aduba, incessante, a Terra Prometida.

É bem tua alma infinita que se derrama

sobre o novo oceano

em busca do rigor para a expressão

das águas resultantes de tal mescla

imagens virgens...de antigas rimas...

as ruas ancestrais.

É bem tua alma

cada vez para si mesma

menos estrangeira.

Agradeço às estrofes a mim dedicadas

o anúncio do novo tempo na tua poesia

- novo, poeta desde sempre, de seiva própria –

senhor do mar e das pérolas

Tua clássica voz me evoca mundos

ainda mais antigos, cenas

que não cabem em Portugal

nem no tempo de seus vates

ainda que lhes pertençam

por direito legítimo

vozes de tempos que passando

e falando de fim permanecem

muito para além do fim anunciado

a fincar raízes em sei lá quê terras

de passado e futuro

vozes testamento e testemunho.

Como dizer dos anos de pastor

se cada verso desses anos

se multiplica muitas vezes sete

nas estrelas a brilhar no fundo do lago

sete vidas

sete mundos

sete pontas do universo.

Cada verso que ostenta a morte,a finge

e desdizendo, afirma a vida de que descende.

Os poemas juram?

O poeta mente?

Nunca o suficiente para eliminar as frestas

por onde certas imagens fogem

a revelar roteiros de secretas viagens.

Que posso dizer desses versos

senão com a linguagem que não tenho

senão a partir da Pátria que não possuo

senão através dos sonhos que, temerária,

ainda às vezes ouço?

Posso deles dizer

em nome dos reinos

dos quais abdiquei

sem coroada ter sido

por força de algo a que chamamos

Destino?

Conjunção de Desencontros?

Ah, esse todo avesso a coisas

com chaves de abrir

esse tudo afiada lâmina

da qual ainda hoje me pende o ser

ferido de morte pela ternura

quando algum sino toca

qualquer detalhe da paisagem antiga.

E posso deles dizer

tomando de empréstimo

algo do espírito da tua nova

de sempre Pátria

que também pulsa em certas quintas

da minha História.

E posso deles dizer, por fim,

com as palavras reminiscentes

Da Pátria,que sabes, habitei em mim.

Nas voltas ao teu Continente

sempre levas na bagagem

certas coisas ainda desta américa.

Gil Vicente, Camões, Caeiro...

paladinos são dos templos

em que celebras da poesia tua

simultânea morte e renascença.

Pastor, se algum dia

na passagem

de Outono a Primavera

nenhum punhado mais

da Terra Prometida

levares na bagagem

ainda assim hei de reconhecer-te

seja qual for teu traje

seja qual for a estirpe

que de ti inaugurares.

Escrito entre 4 e 8 de junho de 2005, ainda outono... no Brasil.

Republicado na manhã de 20 de maio de 2011