MIRAGEM ESPÚRIA I-XII

MIRAGEM ESPÚRIA I

O que lastimo é que te veja agora,

sem perceber aquela estranha graça

que um dia, pelo olhar, jóia sem jaça,

me penetrou feroz, na esgarça hora

em que te percebi, mulher de outrora,

como premonição futura, ainda baça,

de meu destino mesclado com tua raça,

de forma inextrincável, muito embora

perceba a flor de então qual desatino,

que me venceu somente em cego instante

e emurcheceu, porque não foi regada,

por lágrima sequer, em repentino

palpitar que tal magia delirante

fora somente por mim mesmo imaginada.

MIRAGEM ESPÚRIA II

Quando te vejo agora, de perplexo,

escondo os olhos na máscara cordial

de quem muito te quer; mas não real

amor sinto por ti, tão só reflexo

do que senti um dia, em vão desejo,

quando teu rosto rebrilhou-me assim

qual cimitarra e degolou-me, enfim,

na sombra escura do primeiro beijo.

E como essa ansiedade me feriu!

Dominou-me total, completamente,

mesmo que olhasse e não te achasse bela,

pois foi tua alma que a mente me invadiu,

gerando em mim um dote equivalente

à centelha febril de velha estrela...

MIRAGEM ESPÚRIA III

Certa vez, versos fizeste para mim,

nesse tempo longínquo do passado.

Agitou-me o coração, descompassado,

numa mescla de eucalipto e de alecrim.

Como eu sonhei, então! Pensei, alfim,

que encontrara quem andasse do meu lado

e pensasse como eu, de braço dado,

nessa estrada de cascalho e de jasmim.

Fui então Browning, de novo reencarnado

e foste Elizabeth, fiel amante,

os versos a trocar por mensageiro,

cujo passo queriam fosse alado,

porém se demorava, de inconstante,

querendo uisque degustar primeiro...

MIRAGEM ESPÚRIA IV

Mas as cartas chegavam, afinal,

por menos pressa desse vil lacaio,

que desmontava do cavalo baio

e para quem a tarefa era banal...

Eventualmente, celebrou-se o esponsal

de Robert e Elizabeth... E agora saio

e em tal parêntese não mais recaio,

porque este sonho é sonho meu total.

Trocar versos desfaz-se na neblina,

porque era bruma todo o sentimento.

Embora eu mesmo de aedo tenha a sina,

era bem frágil nela este portento.

E ao ver quebrado o ardente juramento,

cerrei sobre a miragem a cortina...

MIRAGEM ESPÚRIA V

Mas não foi tal amor que me lançou

no ergástulo do verso. Já fizera

muitos poemas em passada era:

foi somente a compulsão que retornou.

Que amor frutificasse, quem me dera!

Porém a lágrima no rosto ressecou

e nem sequer uma ruga me restou

para marcar o traçado da quimera...

Com os olhos vazios, contemplo a vida:

no meu deserto não há mais miragem,

mas o oásis em que moro é verdadeiro.

Como eu queria ainda dar guarida

à caravana de fantasmas sem imagem

daquele sonho dissipado inteiro!...

MIRAGEM ESPÚRIA VI

Tu sabes que te quero, por mais que não procure

aproximar-me de ti -- é a bênção da distância

que te torna mais cara -- a própria discordância

em te encontrar, que faz que mais perdure

o desejo de ti, que mesmo que obscure

meus sentimentos vãos, exige uma constância

de me afastar e assim demonstra a relevância

que poderia ter: que a própria alma descure,

só por amor de ti, em risos de lamento,

pois não te busco e temo que possa conseguir-te

e ver que não és nada de quanto me iludia

ou ver que és ainda mais e, para meu tormento,

por te encontrar perfeita, ao conseguir possuir-te,

cortar o fio sublime que a inspiração nutria.

MIRAGEM ESPÚRIA VII

Como é estranho pressentir essas pessoas

que se percebem apenas levemente,

que se entregam sem luta à impotente

expectativa de notícias más e boas,

mundos alheios, figuras são de proas,

de leve nem as tocam, na indolente

conversa sem sentido, ou ao frequente

apertar de um botão e, logo, as loas

escutam dos políticos e atrizes,

ou as críticas crueis a governantes,

para imergir assim nessa inodora

rede de novas, quase sempre crises,

esquecidas das próprias, relevantes,

vidas vazias de olvidado outrora!...

MIRAGEM ESPÚRIA VIII

Foi apenas um toque, bem de leve,

no alto de meu braço, sem malícia,

um toque apenas, isento de carícia,

quase intangível, um toque apenas breve.

Foi heliotrópio pairando de seus dedos.

Foi apenas um toque e foi resina,

foi visgo e mel vibrando na retina,

foi chama azul a revelar segredos,

de fato, inexistentes... Intenções

nem sequer pretendidas... Reveladas

apenas bem de leve... Flutuações

furtando ao sol um som que mal se ouve,

de espanto e de carmim... Em farfalhadas,

apoiadas nesse outrora que nem houve.

MIRAGEM ESPÚRIA IX

não se limita à eclosão do verso

este calor que a alma me resfria,

que se desgasta ao transcorrer do dia,

em cada fragmento que é disperso.

não se limita à cotação do anverso

desta medalha acesa em cantoria,

a cada lustro moléculas perdia

e lentamente o ouro sai, imerso

nos suores das mãos que o manipulam...

assim, em cada linha que desfolho,

se despe o coração, como a estremosa

desnuda se amacia e quase a anulam

os ventos e tampouco mais recolho

a palavra que perdi, por mais formosa.

MIRAGEM ESPÚRIA X

Amo-te assim, ao trescalar do vento,

esse vago e gentil interesseiro,

que apenas finge perpassar ligeiro,

mas que nos furta, em cada agitamento,

o cheiro da epiderme, num momento:

essa névoa de nós, rouba certeiro,

retalhos afinal do corpo inteiro,

envoltos no calor do movimento

e nos leva para longe, nessa bruma,

até que afete de outrem as narinas,

que nos inspira a troco de alimento;

como células perdidas, uma a uma,

cheiro tua alma, envolta em cruas sinas,

até sobrar somente o fingimento.

MIRAGEM ESPÚRIA XI

Se fosse um sonho, seria bem menor

o nosso esvaimento em tal ideal,

mas esse desgastar é bem real:

esgota-nos de forma bem pior.

O gotejar do verso rouba a cor

que nos reveste a alma e o carnaval,

em cinza e negro, mostra o nosso mal,

na dança morta sem mais estridor.

Como insetos a zumbir sem suspeitar,

esvoam-se sonetos e esperanças,

até que resta apenas nosso olhar,

esgazeado ao redor, sem esquivanças,

na desistência de quaisquer bonanças,

em que possa finalmente respirar.

MIRAGEM ESPÚRIA XII

Resta somente a chave do segredo,

enferrujada de estar na fechadura,

ao roçagar da mão em que murmura,

de partir-se, afinal, mostrando medo.

Eu mesmo sou a chave e, se não cedo,

quando a pressão da vida me segura,

desse cadeado faço sepultura

e para mim resguardo o sonho ledo.

E, enquanto faço o esforço derradeiro,

para voltar a ser mais que uma imagem,

vejo que é inútil todo o meu desdouro.

A chave é a própria vida e o corpo inteiro,

por espúria que seja essa miragem,

é que retorce a tranca e abre o tesouro.

SPURIOUS MIRAGE X IN ENGLISH

That's how I love you, like the wind's scent,

this vague and self-seeking flyerby,

who only pretends hastily to pass us by,

while stealing from us, in his every movement,

the smell from our skin, in a fleeting moment,

this fog of ours, to easily rob and fly,

indeed scraps from our body yank to try,

wrapped in the warmth of said involvement.

And within this haze, he takes us away,

to reach nostrils and stir someone's state,

faking the smell into fulfilling meals.

Like lost cells, one by one astray,

I smell thy soul, trapped in dire fate,

until only lasts the hoaxing it deals...

Again, the original, for comparison,

MIRAGEM ESPÚRIA X

Amo-te assim, ao trescalar do vento,

esse vago e gentil interesseiro,

que apenas finge perpassar ligeiro,

mas que nos furta, em cada agitamento,

o cheiro da epiderme, num momento:

essa névoa de nós, rouba certeiro,

retalhos afinal do corpo inteiro,

envoltos no calor do movimento

e nos leva para longe, nessa bruma,

até que afete de outrem as narinas,

que nos inspira a troco de alimento;

como células perdidas, uma a uma,

cheiro tua alma, envolta em cruas sinas,

até sobrar somente o fingimento.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 02/05/2011
Código do texto: T2944981
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