A COTOVIA (VIVEIRO VI) & OUTROS

VIVEIRO IV -- A COTOVIA

A quem compararei o meu amor?

À cotovia, que anuncia a aurora,

Que vôo alça inda à noite, nessa hora

Em que o sol mal nos mostra seu rubor,

Mas canta a alba do risonho dia,

Gorjeia alegre e cheia de pujança,

Na melodia que me dá esperança

De ver-me nos seus olhos, como via

Brilhar nos meus o canto da saudade,

Dessa avezinha tímida e insegura,

Nas tempestades de seu coração,

Tão turbulento em sua opacidade,

Quão cristalino, na alvorada pura,

Desse seu canto frágil de emoção...

ANTIQUADO

Nos dias atuais, que tanta variedade

Expõem em quantas opções sexuais,

Até acho estranho não querer jamais

Nem zoofilia, nem homossexualidade.

É como se tais coisas, totalmente

Alheias a mim fossem, sado-masoquismo,

Necrofilia, crianças, voyeurismo...

Tudo me deixa tão só indiferente.

Anseio muito mais por sentimento,

Que tanto exprimo, nas palavras velhas,

Dessas baladas tão só intelectuais...

E fico a melindrar, olhos no vento:

Se os homens eu não quero, nem ovelhas,

Por que as mulheres não me buscam mais?

RECORDAÇÃO XVI

Eu nunca tive pendor homossexual.

Mesmo que tenham me tentado, inda menino;

Mas, por minha sorte, o corpo feminino

Eu conheci bem cedo, no banal

Porém freqüente aconchego com a menina

Que morava também em nossa casa,

Na cama em que dormia; aí se embasa

Meu heterossexualismo: ela me ensina,

Pois é mais velha e o corpo masculino

Já conhecia de antes... coisa triste...

Nunca foi mais que experimentação.

E como foi estranho que um menino

Perdesse a virgindade [se isso existe],

Antes mesmo de tentar masturbação...

AS JOVENS DE ROMA II -- CALPÚRNIA

Meu pátio ressecou: perdeu suas flores

Nesse inverno talar, qual primavera,

Mas sem o recender, sem os olores

De estames e pistilos, sem a antera

Em deiscência, a chamegar quimera,

Sem ramos verdejantes de tremores;

Até o braço da musa é uma cratera

De que não sai mais luz, nem mais amores...

E como se acha estéril meu jardim...?

Há ramos verdes, farfalhando ao vento,

Promessas vagas, sem favos de mel;

Mas quando me aproximo, vejo assim,

Sem ter botões... E me esvaio no portento

De tantas flores que rebroto no papel...

INTERMEZZO IN BLUE

Que fizeram teus olhos, logo antes que lesses

o verso meu desnudo, que fiz só para ti?

Que fazem teus ouvidos, para que esquecesses

o quanto em nosso amor, ingênuo, eu cri?

Que fizeram teus lábios, antes que perdesses

a consciência das promessas, feridas, alquebradas?

Que fez teu coração, que não mais escrevesses,

depois de tantas frases de sonho marchetadas?

E então os teus cabelos, cascatas ondulantes,

quais ombros acarinham, tais dedos de cetim?

E os dedos teus, que fazem, suaves e vibrantes,

nesse momento insólito, quão longe estão de mim?

Embora eu sinta a brisa e os ventos inquietantes,

trazendo-me teu hálito, num beijo de marfim...

TESSITURA [para Fernanda Emediato]

Confesso que jamais senti-me qual Narciso.

Muito ao contrário, sempre desconfiado

Olhei o meu reflexo, achando-me indeciso,

Talvez por nesse rosto saber-me aprisionado.

Meu cérebro, porém, foi capaz de urdiduras

Mais belas que as de Aracne; tão potentes,

Em seu vigor viril, tecido de amarguras...

Mas não me envaideci; posto que inteligentes

Fossem meus verbos e tudo quanto fiz,

Não dei ciúmes à deusa... Sempre reconheci

Que dotes são talentos, em esplendor conversos

Pelo favor dos deuses... Apenas, sempre quis

Encontrar minha ninfa; mas Eco nunca ouvi,

Por mais que dessangrasse minhalma nestes versos.

Abaixo segue uma "estrofe sáfica", que também escrevi hoje. É a métrica criada por Safo, que escrevi sob o ponto de vista de Alceu, durante a cremação dela, que era bem mais moça e lhe deveria ter sobrevivido. É um ritmo difícil, alternando versos endecassílabos de pé [final] troqueu [tônica+átona, portanto paroxítonas], dáctilo [tônica mais duas átonas, portanto proparoxítonas], espondeu [duas tônicas finais, praticamente sem correspondente em português, portanto dois monossílabos ou uma oxítona seguida de monossílabo] e um troqueu final. O esquema rítmico é ABCA ABCA, um ritmo realmente desusado em português. Espero que te agrade. com amor, bill.

METROS GREGOS VII

A PIRA DE SAFO

Ainda sinto o toque de teus lábios

nos ossos de meu rosto, tal o básico

sabor de um sonho, que me mantém só,

afastado do orgulho, como os sábios.

Ainda sinto o beijo dos teus olhos;

em minhas narinas eu conservo o fálico

ardor de um sol que já se fez em pó,

sol de madeira, sol dos santos óleos

que teu sudário absorve, uma resina

fluindo na fumaça, nesse pálido

odor que me enche o peito e não faz bem,

que a solidão imensa descortina.

Quiseste-me cremar, cremo-te agora:

as chamas te consomem, quão inválido

sente-se aquele que hoje aguardar tem

o apagar da flama que te leva embora.

A deusa te levou, nessa freqüente

escolha aleatória, nesse mágico

soprar da vida o fio fugaz enfim,

e eu fico aqui, nos versos impotente.

Depois de contemplar-te o rosto exangue,

queria enfim, neste momento trágico

[morreste por um outro, não por mim],

apagar esses fogos com meu sangue.

RECORDAÇÃO XVII

E houve uma vez em que a musa cintilante

Veio mostrar-me o caminho do banheiro

E um beijo então me deu, tão verdadeiro,

Que sinto como hoje aquele instante...

Num beijo inesperado, tomou posse

De meu corpo e de mim, avassalante,

Possuiu-me inteiro, meu pasmo expectante,

Boca na boca, sem que o corpo roce,

Por um momento qualquer, no meu arfante

Membro viril, no ardor inesperado;

Nem ao menos urinei: pensava nela

E continuava excitado e palpitante...

E deu-me apenas um tal beijo consagrado,

Como nunca outro tive, sequer dela...

AS JOVENS DE ROMA III -- PLACÍDIA

A cada vez que um verso me é amputado,

que minhas sinapses arrasta, em vendaval,

rasgões me faz na alma, a ponto tal,

que o coração se faz dilacerado...

Que neste ponto intermediário de minha vida,

só quero me encerrar, sem minhas memórias

recompassar... Sem mais lutas inglórias,

renovadas dia a dia, em dura lida...

E fico assim, pasmado a delirar,

chamuscado por tantas explosões,

que expõem, menos que sonhos, tantos medos...

E chego, em tal instante, a desejar

que os versos não jorrassem borbotões,

a me rasgarem a alma pelos dedos...

VIVEIRO VI -- O ROUXINOL

A quem compararei o meu amor?

Ao rouxinol, que à noite nos encanta,

Escuro e esquivo, cujo canto imanta

E magnetiza qualquer perseguidor...

Um passarinho negro e tão mesquinho!

Quem diria, ao enxergá-lo, à luz do dia,

Que seu gorjeio tanta melodia

Pudesse produzir no escuro ninho...

Eu encontrei, um dia, um rouxinol,

Humilde e triste... E nem cantar sabia...

Mostrei-lhe seu valor e o doce canto

Que podia emitir, já posto o sol...

E hoje ela canta, estuante de harmonia,

Mas para mim restou somente o pranto...

JARDIM DO ESPANTO V --- AGAPANTO

Não é que eu queira mal, não é que a vida

Me tenha sido ingrata ou indiferente:

Sempre vivi na observação freqüente

De que lazer é esforço e a paz é lida...

Trabalhei sempre, desde os onze anos,

Pois dedicado à datilografia

Fui desde cedo; e quanto mais sabia,

Tanto mais tinha a fazer, nesses tiranos

Anos da adolescência e, sem mesada,

Fazia relatórios, cartas e a chamada

Dos alunos da escola de meu pai,

Aceitando as tarefas, sem um ai,

Até que despertei, para explodir em canto,

Num chuveiro violeta, tal como o agapanto... (*)

RECORDAÇÃO XVIII

Vou te contar: eu tive uma experiência desusada:

Éramos hippies então; e era comum

Tudo o que tínhamos, nem roupa ou bem algum

Era negado: nosso era tudo e meu não era nada...

Vivia então com doce namorada.

De olhos claros como azul é a fonte;

E outra jovem chegou-se, num reponte,

Querendo amor fazer com minha amada...

E ela consentiu, porém ao preço

Que eu desse amor também participasse;

E a lésbica assentiu e dá-me o ventre,

Mas sem prazer sentir, só pelo apreço

De permitir que nela um homem entre,

Para que um corpo de mulher acariciasse...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 19/04/2011
Código do texto: T2917649
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