DEJANIRA X & MAIS
DEJANIRA X - AS AVES DO LAGO ESTÍNFALE
Em gotas de matiz sonoro e adocicado,
O crocitar das aves que assolavam
De Estínfale o lago e assassinavam
A quantos se atrevessem ao descuidado
Passeio por suas margens caminhar.
Eram aves de bronze e carne humana
Seria o seu festim; em extrema gana,
Sacudiam suas asas, por lançar
As penas afiadas qual punhal.
Mas Pallas enviou ao seu herói
Címbalos de som estridulante e fino.
Hércules os sacudiu; e o som fatal
Expulsa as aves; e assim ele constrói
Beleza por tortura, razão por desatino.
VIVEIRO II -- A ÁGUIA
A quem compararei o meu amor?
À águia altiva, de olhos penetrantes,
Senhora dos espaços cintilantes.
A mostrar, corajosa, esse valor
Que conquistou, com tanto sacrifício,
Depois de sofrer muito, pelos erros
Que cometeu, ao longo dos desterros,
Que lhe trouxeram tanto malefício...
Porque essa águia real, essa mulher,
Que encontrei um dia, malferida,
Por um antigo amor desiludida,
Um dia há de tornar-se o que mais quer:
E quando seus tesouros compartir,
Seu coração em glória há de expandir.
JARDIM DO ESPANTO II -- O ESTROFANTO
Não é que eu cheire mal, porém exalo
Uma aura de vigor dessazonado
Que sei despertar medo; e difamado
Sou mais ainda, mesmo quando calo.
Quem sabe se é por ser vegetariano
Em terra de carnívoros... mais salgado
Seja o cheiro dos outros, conformado
Ao que esperam as narinas, sem reclamo.
Mas é que esparzo tantas coisas mais:
Tenho cheiro de livros, de jornais,
Não cheiro a carro e menos a cavalo.
E, desse modo, eu causo um certo abalo
E quando me farejam, vêem meu pranto
Cheirando mal, qual cheira um estrofanto.
DESCAMINHO
Por tantos erros que cometi na vida
Recebi como prêmio este sardônico
Escrever versos de cantar afônico:
Um coro afásico para a despedida.
Um pouco eu aprendi; serviu-me pouco,
Do muito que esqueci, mais precisava;
Soubesse mais, enfim, melhor cantava
E aconselhava, mas meu conselho é rouco.
Não dá respostas para mim sequer;
O que farei então, se uma mulher
Me pede ajuda, quando atribulada?
E só constato, por tudo que já fiz:
Não passo, ainda agora, de aprendiz
Desta minha vida, sempre renovada...
METROS GREGOS III --
DACTÍLICO DACTILOSCÓPICO
Vejo-me envolto em novo esplendor Mágico:
A redação de um métrico Dactílico,
Criado pelos gregos para o Idílico
Representar, de preferência ao Trágico...
E ocorre que este ritmo Antiqüíssimo,
Para romanos e helenos sempre Válido,
Na guerra frígido, para amores Cálido,
Estuante de fulgor, raro e Belíssimo,
Tampouco corresponde ao nosso Estólido
Português férrico e de sabor Metálico,
Paroxítono e verboso no seu Tônico
Prazer de demonstrar-se firme e Sólido
E então fragílimo, ao enfrentar o Fálico
E flácido rufar de meu tambor Irônico...
Preciso acrescentar que o metro dactílico tem um pé formado por uma tônica e duas átonas? de fato, uma longa e duas breves, porque o daktylos, ou 'dedo', tem a falange bem mais longa que a falanginha e a falangeta...
DEJANIRA XI -- A CORÇA DE CERINO
Beleza por tortura, razão por desatino,
Ao ver que Heracles os monstros derribava,
Com igual facilidade, se não prendia, matava,
Euristeu determinou-lhe um feito pequenino:
Caçar a bela corça do monte de Cerino,
Com chifres feitos d'ouro e a Diana consagrada;
Cem vezes tenta o herói vencê-la de cansada,
Ou por cem armadilhas de estro peregrino,
Sem nunca conseguir, pois sempre lhe escapava,
Até lembrar, por fim, de estender-lhe a rede
Entre as colunas do templo; e do perfume
De incenso recobri-las, que assim lhe disfarçava
O cheiro do cordame; e então a prende e mede
Coragem por perigo, sabor por azedume...
JARDIM DO ESPANTO III -- A ARTEMÍSIA
Não me interessa provar do absinto,
Que de tantos poetas tristes vidas
Destruiu, em miragens incontidas,
Nas visões verdes de pavor retinto;
Nem preciso da Erva de São João
Para tratar meus males e minhas dores:
O que preciso é do elixir de amores,
Que mais feliz me tornasse o coração...
Porque esta grande família de singelas
Flores inclui o hipérico brilhante,
Traduz remédio e licor alucinante;
Pois dentro em mim, outro palor se estígia:
Cura a si mesmo; e mostra. em frases belas,
O amargo coração, tal que a Artemísia...
DEJANIRA XII - O CINTO DE HIPÓLITA
Coragem por perigo, sabor por azedume
O leva a cavalgar até a bela Hipólita,
Mas não de amor ou gozo, pela razão insólita
De roubar-lhe da cintura o cinto do ciúme,
Trançado pela mão do pai, o grande Marte;
E novamente a força de nada serve ao herói:
São tantas amazonas que o número destrói
Até mesmo o vigor... e apela para a arte:
Hipólita seduz e acaba em raptá-la.
Já no barco de volta, ela sente saudade
E anseia por voltar ao reino idolatrado...
O zóster ela deixa ao herói que diz amá-la;
E embora essa partida lhe dê infelicidade,
Mais que Heracles eu sofro, de tão atribulado.
AS JOVENS DE ROMA I
TARQUINIA
Esquiva flor, que me urdiu um dia
a teia esquálida da emoção esquiva;
esquálida essa flor que, de lasciva,
apenas emoção transiente sugeria.
Ungida flor, que me feriu à noite,
com um golpe de olhar fugaz e raro;
feroz a flor, que fez em dia claro,
na luz de seu olhar, ungido açoite.
Flor ressequida e alheia ao sentimento
que despertou em mim e que retorna,
somente por capricho e agrura brava.
Flor agridoce, no espanto de um momento
de insipidez silente... nesta morna
doçura morta da certeza escrava...
METROS GREGOS IV --
ANAPESTO ANAPLÁSTICO
Aqui se encontra a dura exultaÇão,
Com desfolhar gentil de malmeQuer;
Aqui se afasta a paz, nessa emoÇão,
Pela ânsia insatisfeita da muLher,
Que seduziu sagaz um coraÇão,
Sem conceder jamais beijo seQuer,
Que me propôs amor, pura iluSão,
Adiada para além de onde estiVer
Minhalma sensitiva. Mas, se eu souBer
Que poderei achá-la, mais aLém,
Envolta na salgada mareSia,
Se minha vida toda lhe trouXer,
Tenho certeza que lhe darei, tamBém,
Os farrapos de minha última harmoNia...
O anapesto requer um pé poético de duas sílabas breves e um longa... ou duas átonas e uma tônica... este é fácil em português. bill.
DEJANIRA XIII -- O CÃO DO INFERNO
Mais que Heracles eu sofro, de tão atribulado:
Ao Hades não desci, mas sinto viver nele:
Os sonhos me constrangem, sem que fulgor revele
Uma bênção sequer, ao longo do passado...
O herói foi envolvido na pele invulnerável
A enfrentar Cérbero, o cão de três cabeças;
Falou-lhe o Rei dos Mortos: "Agora não esqueças:
Não podes empregar, contra a fera indomável,
Coisa alguma que seja, somente a própria mão."
E assim ele lutou contra o feroz mastim:
Quebrou-lhe um dos pescoços e mutilou o canino,
Firmemente o amarrou e trouxe ao verde chão;
Mas livre embora Heracles, não libertou-me assim,
Porque a história já li e sei que é meu destino.
VIVEIRO III -- O PARDAL
A quem compararei o meu amor?
Ao pequeno pardal, que mal pipila,
Exposto aos gatos, nem sequer vacila
Ou aos golpes do ciúme e desamor.
Porque esta doce prenda de menina,
Enraizada há tantas gerações,
Nesta terra sulcada de emoções,
É, ainda assim, graciosa e feminina.
Temor não sei qual seja que a dirige
A confessar amor e a recantar,
Qual se tudo não passasse de ilusão,
Na insegurança, afinal, que tanto a aflige,
Penas castanhas de vago cintilar,
Na singeleza castanha da infração...
JARDIM DO ESPANTO IV ---
A TRADESCÂNCIA
O que eu sinto por ti, dia após incerto dia,
É inquietação tranqüila e vaga insegurança,
De não saber quem és, na simples esquivança
De quem mostrar-se bela deseja e nem sabia
Como manter seu bem, a quem, trocando açoites
De más palavras, ferozes, como pérolas
De maus amores, ardentes como férulas,
Conservar bem aceso o interesse e às noites,
Depois de um dia de atroz digladiação,
De ser uma mulher cruel e depois meiga,
Mostrar-se dadivosa e ardente, nessa instância
De uma incerteza certa, em pálida emoção,
Que me converte a alma, na religião mais leiga,
Tranqüilamente inquieta, tal como a tradescância.