INDEFERIDO & MAIS
INDEFERIDO
Se um dia retornares, meiga estrela,
que me procura sempre e não permite
que empós ela eu vá, mesmo que incite,
na comissura dos lábios, uma bela
sugestão de sorriso, um laivo apenas,
para falar de amor e então contar,
numa frase final, que desconfiar
eu devo dela... sorriso em que condenas
ao ergástulo frio da pálida esperança
tudo o que prometeste... que não confia
em si própria ela mesma, por saber
como muda de humores, sem tardança...
quero que saibas, porém, com nostalgia,
que eu confiarei em ti... até morrer.
VENIAGA [mercadoria]
Eu sei que pela vida os mais fogosos
Se esforçam por ganhar um corpo, um beijo
E tanto mais se esforçam se o desejo
Lhes é frustrado em momentos cobiçosos.
E que, após a conquista, tal anseio
Empalidece e murcha e novos alvos
Se põem a perseguir... esses papalvos,
Que abandonam seus tesouros de permeio...
Eu sei que os outros buscam; como cegam
A sua razão, como se orgulham disso
Que acabaram por tomar com tanto brio.
Quanto a mim, não valorizo o que me negam.
Posso até insistir... lutar por isso,
Mas quando ganho enfim, sinto um vazio.
VELÓRIO
E eu me ponho a insistir pelo teu beijo...
Que seja voluntário e casto e puro,
Que sejas tu a preparar o ensejo
Por me deixar colher fruto maduro,
Guardado para mim e tão negado:
Esse fruto de dúvida e incerteza,
Esse fruto, que em suspiro devorado
Não se consumirá, porém nobreza
Há de gerar maior que a dor do mundo;
Será um beijo de amor tal que não houve
Na vida tua e minha até agora;
Será um beijo de esplendor profundo,
Que dê louvor a ti e a mim não louve,
Porque esse beijo me deste e foste embora.
FIDALGA
Nem sei o que escrever na madrugada,
Gélida chama que insuflou meu peito
De pérfida malícia, de escorreito
Beijo de vento nas faces da alvorada.
Nem sei o que escrever nesta hora fria,
Se devo descrever o que perpassa
Pela minha mente, se me satisfaça
Redigir tão somente o que sentia
Naquele momento de estranha exaltação
Em que tão lealmente confessaste
O que sentias por mim; tão surpreendente
Que acabasses revelando essa emoção
Com que tanta nobreza a mim honraste,
Para fugires depois completamente...
DISSIDÊNCIA
O que fazer com meu amor de outono?
Se ao menos fosse fácil, quando o sono
Finalmente a outro reino me conduz
E me percebo caminhando à luz
Desses teus olhos mornos e salgados,
Teus passos junto aos meus, descompassados
Por sentimentos de tanta variação,
Por vezes já rendida, de outras não
Mais que a brincadeira do vago sentimento...
Quando o alvo atinges apenas um momento
Te tornas dadivosa; e pronto se retrai
Essa inconstância tua; e logo sai
De tua boca de novo o hálito da espera.
Enquanto a alma se encolhe e o peito reverbera.
REVERSO
momentos oscilantes propicias...
nunca sei onde estou, o que fazer,
que atitude tomar, como empreender
o assédio a esse castelo, em que vazias
são as ameias, torretas, barbacãs,
quais órbitas silentes, cujo olhar
apenas se suspeita, sem pensar
que é um relicário vestido em preces vãs.
mas de repente, tudo se ilumina!...
os arautos proclamam as promessas
que me fervilham exuis no coração...
e então, tudo falece e me arruína!...
que coisa estranha... quando amor confessas,
esse é o momento de deixar-me, então?
ESCULCA
Segundo me parece, degradou-se
em seda e vidro o relacionamento:
apenas esplendeu, por um momento,
mas a seguir de novo transformou-se,
na estranha relação cristalizou-se,
de enfrentar cada dia um sentimento
completamente novo: a cada evento
uma nova mulher manifestou-se.
Mas a tudo que perpassa, sou constante:
não modifico sequer por um milímetro
a minha posição de lutador.
Aguardo e espero a musa delirante:
meu coração tornou-se num voltímetro,
a controlar os impulsos desse amor...
MULTÍPLICE
Para isso me serviste, mulher com que sonhei:
Para escrever meus versos; de ti nunca terei
Senão vagas promessas e pronta retirada,
Momentos só de sonhos, momentos só de nada.
Todavia, estas linhas podem fazer um bem
A milhares de outras que, como tu, descrêem;
Milhões de solitárias por esse mundo afora...
Embora me desprezes neste momento, agora
Em que reluz em ti um novo sentimento
Indiferente e cru às horas de portento...
E as frases que redijo são novas; todavia
Foste tu que as criaste, num golpe de magia,
Para dar a outras tantas momentos de ilusão,
Consolo, um triste alívio e vaga exaltação...
DIMENSÃO
Sempre me percebi a este corpo alheio,
Não mais que um condenado, um prisioneiro,
A viver encerrado, a viver estrangeiro,
Sem poder encontrar via de escape, um meio
De achar uma saída, enfim, de libertar
Aquilo que sou eu, lançar-me pelo espaço,
Sem as peias da carne, perder-me no regaço
Das almas imortais, sem ter de suportar
Esse viés de amargura que tanto me restringe.
E hoje, mais que nunca percebo a sensação
De ser um ser que habita tão só uma redoma.
Meus olhos clarabóias, o mundo não me atinge,
Estou preso, estou só, nunca tive um irmão,
Pois quanto me dá a vida, sorrindo me retoma...
DOADOR
Meu corpo é tua cidade, minhas veias são tuas ruas,
Caminhas dentro em mim, como se fossem tuas
Minhas artérias todas: meu ventre é teu destino,
Meus rins teu hospital; regato cristalino
É o fluxo da linfa que segue o imunológico
Sistema de defesa; meu campo neurológico
Tu fazes de teatro, cinema e até de estádio,
Meus sentidos tevê, Internet e teu rádio.
Tuas compras todas em minhas carnes fazes,
São lojas tuas meus músculos... respiras
Nos brônquios dos pulmões, sem compaixão;
Meu fígado é farmácia e nele te refazes;
E quando sentes fome ou por beber suspiras
Se torna em restaurante meu próprio coração.
MAESTRIA
Escuta agora, mulher de tez perfeita,
Confiante agora de seu poderio,
Catálise e fiel de nosso brio,
Perfil sensato e mente que deleita:
Quero que sejas sempre semelhante,
Na mesma limpidez que nos uniu:
Para um só beijo pouco ardor surgiu,
Mas sabes como eu quê de intrigante
Pode brotar, se apenas permitirmos,
Se a sondagem somente concluirmos
E continuarmos, embora por brinquedo.
A ternura é real, mas temos medo
Que dela usufruindo, mais se torne
E o coração só nela se conforme...
ENTRANHAS
vivemos sempre essa dicotomia
entre alma e corpo, mente e coração;
sempre falei quão pura é a emoção
que me prendeu a ti em harmonia;
e agora, chegas perto e te retrai
o medo de que algo de concreto
ocorra entre nós dois, se sob um teto
nos achemos a sós, temor que sai
justamente de um frágil coração.
de certo modo, esse temor incorpo,
porque amas a mente e a alma também,
porém já te congelas da carne só à menção.
Mas se eu te toco no íntimo do corpo,
A mente, com certeza, diz: "amém!..."