= Trajetória 5 =

Agradeço a todos que continuam a ler-me.

PARTE 8

“Aceitar comodamente a derrota,

é mergulhar fundo

no nada”

Não me restava mais nada, pensava com a minha ignorância. O “bom velhinho” sempre disse que tudo na vida é acessório o importante é a vida. Viver é o ato de saber nascer a cada dia.

Apesar de tudo, tomei o caminho mais fácil, e o mais fácil era beber, beber, beber.

Covarde não é quem forje de uma briga e sim aquele que não luta para ser feliz.

Suélen, agora, trabalhava para o sustento da família. Cansada, desanimada e sei esperança, olhava-me com desinteresse. Eu era aquele resto de nada. A fome rodeava a nossa casa. Sem esperança, aos prantos, Suélen decidiu mandar as crianças para a casa de seus pais. Todas as manhãs, eu me sentava numa pedra, perto da soleira da porta do barraco, pedindo a Deus que alguma alma boa pagasse uma pinga para mim. Senhor, quanta tristeza! As mãos tremiam e o único remédio capaz de acabar com a tremedeira era outra bebida. Com a falta dela, vinha os delírios. Delirar é ver lagartixa virar jacaré, elefante sentado no fio, o demônio correr atrás da gente; ver soldados imaginário querendo nos matar. Para me livrar de tudo isso, o único remédio era outra dose, mesmo sabendo que aquele remédio matava. Às vezes rezávamos e pedíamos a Deus que o meu estômago aceite a bebida; muitas das vezes, éramos obrigados a beber, de três a quatro dose, para parar uma só no estômago. Só assim poderíamos curar o mal-estar.

Naquela manhã, eu estava sentado, como sempre, na pedra, tremendo, vomitando uma gosma amarelada, maldizendo a vida, quando um belo carro parou ali perto. Desceu um jovem elegante, caminhou para o meu lado e perguntou:_ O senhor não gostaria de trabalhar comigo? Eu estou precisando de um rondante. O que você acha? –Olha, moço, eu estou mesmo precisando trabalhar, mais estou bebendo muito, estou numa fraqueza tão grande, que, se eu não beber, pelo menos uma dose, não tenho forças nem para andar. Você paga uma dose e podemos conversar. O moço levou-me ao bar pagou-me uma bebida. Perguntou o que eu decidira._ Se o senhor não se importar de ter empregado bêbado, eu aceito. Ele disse que a única falta que não admitia, era o abandono de serviço, que eu podia beber à vontade, que ele mesmo deixaria, um garrafão de cachaça, no almoxarifado, que eu podia servi-me quando quisesse. Meu Deus do Céu! Pensei. Trabalhar à noite, com direito a beber à vontade, era muita bondade, ao mesmo tempo. Claro que topei e comecei a trabalhar no mesmo dia. Trabalhava das dezenove horas às sete da manhã. Tudo era normal. À noite bebia e dormia o dia todo. Isso é que era vida! Trabalhei durante oito meses, sem problemas. Certa noite, estava eu trabalhando, quando começou a chover fino e o tempo esfriou repentinamente. Eu não levara meu agasalho. Então, resolve fugir ate a minha casa. Saí apressadamente, para que ninguém notasse minha ausência corri como se tivesse visto um fantasma. Chegando a minha casa, empurrei a porta com força e nesta hora vi meu mundo desabar dentro de meu próprio lar. Vi meu patrão e benfeitor aos beijos e abraços, com minha Suélen. O chão fugiu de meus pés e caí desmaiado. De todos os sofrimentos que eu passara, nenhum se comparava com aquele. Acordei, tempo depois, em um hospital da cidade. Permaneci até passar por uma desintoxicação. Quando saí, fui direto para casa. Ela estava vazia. Suélen tinha me abandonado. Procurei a vida inteira pela sorte, agora estava entregue à própria sorte. Saí pelas ruas, sem destino. Sabia que dali em diante seria considerado a escória do mundo.

PARTE 9

“Admitir a derrota é descobrir

que o nada, também

de partida”

é um ponto

O bom velhinho dizia que o alcoólatra era considerado a vergonha do mundo.

Dali para frente, éramos um trio inseparável; a rua, a garrafa de bebida e eu. Como dói a solidão! Não existe sofrimento igual! Eu chegava a uma encruzilhada, sentindo que tato fazia ir para o norte ou sul, leste ou oeste, ninguém me esperava mesmo! Aos poucos, fui me adaptando à nova realidade. O meu lugar era junto aos mendigos. Bebia, comia e dormia com eles. Eu não estava com eles, eu era um deles. Dormindo ao relento, pouco alimento, e muita bebida, passando uma friagem danada, muitos de nós amanhecíamos duros; já havíamos passado para o sono eterno, sem choro, nem vela. Naquela circunstância, morrer era sorte.

Muitas vezes acordávamos com fogo em nossos pés. Queimavam nossas roupa e não tínhamos a quem pedir por socorro. Se porventura alguém chamasse a polícia, os únicos marginais espancados éramos nós. Que mundo ruim era aquele, que só existia para nós, os desesperançados! Ali, não tínhamos nome nem passado, era apenas oito mendigos que vivíamos ali.

Várias vezes, subi no viaduto, disposto a pular de lá, acabar com tudo de uma vez, mas uma força maior roubava toda a minha coragem. Quantas vezes fui conduzido para sanatório, como um indigente louco! O mais triste é que eu estava em pleno delírio. E o delírio passa rápido. Aí, começamos o convívio com pessoas totalmente loucas. Tenho a impressão de que, talvez, ali, não seja o inferno, mas uma réplica fiel de sua sala de estar. Ali, não podíamos dormir. Víamos cenas horrorosas: pessoas comendo suas próprias fezes, uns tentando estrangular os outros. Havia um interno que ficava com um pinico na cabeça, obrigando-nos a marchar e a fazer continência, sempre que passávamos perto dele. Dava verdadeiros berros de comando, e se não fosse atendido, ele tornava-se violento. Tomar banho, era com uma mangueira, com bastante pressão. Ali, realmente e´ o lugar onde deixamos de acreditar em Deus. É ali que os homem apagam a última luzinha que, timidamente, tentava brilhar no final do túnel. Quando saí daquele lugar, com a cabeça cheia de sedativos, sentia como se tivesse dormido por mil anos. Nesse período, era como se alguém houvesse roubado a minha alma. Olhava as pessoas sorrindo, tentava entender como naquele mundo de cão, alguém tivesse razão para sorrir. A apatia tomava conta de mim. Meu destino era vazio, nem mesmo a morte me interessava. Andava pelas ruas, a alma permanecia voltada para o nada. Naquele dia, alguma coisa se modificara em mim: uma agonia, uma inquietude, tomava conta de meus pensamentos. saí pelas ruas, como um robô, atravessei praças e avenida e a agonia continuava a torturar-me. Era uma sensação esquisita, como a de um compromisso esquecido. Deixei que as minhas pernas me conduzissem ao acaso. Cheguei ao cruzamento da rua principal e vi quando uma criança, de dois anos, descia correndo rua abaixo, sem o menor controle de suas passadas. Pressenti o perigo que corria. Na velocidade em que se aproximava do cruzamento, ela não teria a menor chance de parar Sem dúvida, invadi a rua, num impulso e corri em direção ao garoto. Atravessado a rua, instintivamente, o empurrei para cima do passeio, impedindo que ele fosse atropelado. Eu não tivemos a mesma sorte. Um ônibus que passava, atropelou-me. Foi jogado a uma grande distância; a última coisa que me lembro, foi de um grito de desespero. Permaneci muitos dias em coma, até que recobrei minha razão. Estava aturdido, sei saber o que havia acontecido. Junto de mim, uma moça chorava de alegria e não se casava de repetir;_ Moço, você salvou a vida de meu filho. Só Deus vai recompensá-lo! Aos poucos, fui lembrando as últimas cenas; percebi então que cumprira involuntariamente a vontade do Pai.

Lembrei-me então, do bom velhinho. Ele sempre dizia:_ Nada no mundo acontece por acaso. Se eu ainda estava vivo, talvez o grande Mestre, ainda estivesse preparando muito mais lições para mim. É, tenho mesmo que admitir: Deus, quando quer escrever suas histórias, ele as escreve de maneira surpreendente. Senti que aquela história, tomaria um novo curso. O pai de Gerson, o garoto que salvei, vinha me ver todos os dias, trazia roupas, escova de dentes, frutas e ainda me dizia que não queria que faltasse nada, além de desejar que eu reencontrasse a razão de viver. Ele era, naquele momento, o meu protetor: a cada dia demonstrava ser meu amigo. À medida que o tempo passava, nossas confidências tornavam-se íntimas. Todos os dias eu contava as horas para vê-lo. Muitas vezes telefonava para ele. Com a minha carência, era compreensível, pois há anos que esquecera o valor de uma grande amizade. Nilton, certo dia, começou a desabafar. Contou que era filho de alcoólatra e que sofrera o diabo em sua vida. Sua infância foi marcada com fatos muito ruins, que nunca lhe deram sossego. Contou-me algumas passagens corriqueira na sua vida de filhos de alcoólatra, o sofrimento de sua mãe, e que por causa de desequilíbrio familiar, causado pela bebida, seu irmão mais velho veio a suicidar-se. Contou, também, que tinha dez anos e assistiu ao pai ser jogado para fora de um boteco, porque não tinha mais dinheiro. Dois policiais que passavam naquele local agarraram, espancando-o muito aquele indefeso farrapo humano. Nilton gritava e chorava, pedindo aos impetuosos soldados que deixassem o seu pai em paz. Quando conseguiu leva-lo para casa, ele urinava sangue e, em conseqüência disso, ficamos órfãos, um mês depois.

Quando Nilton terminou suas narrativas, eu o abracei e choramos juntos. Então falei sobre a minha trajetória e todos os dissabores causados pelo alcoolismo. Bons exemplos eu tive a vida toda, mas meu orgulho era maior que eu. Ouvi, certa vez, uma frase com os seguintes dizeres: “Sábio é aqueles que aprende com a experiência alheia, tolo é o que aprende com a dele próprio.” Eu fui o tolo.

Os dias passavam e eu começava a abrir meu coração para Deus; pelo menos, estava fazendo o que eu aprendera com o bom velhinho. Mesmo que o coração não esteja aberto, deveria deixar a chave sempre do lado de fora... Continua...

ANTÔNIO TAVARES
Enviado por ANTÔNIO TAVARES em 30/07/2010
Reeditado em 30/07/2010
Código do texto: T2407836