Namoro de sapatos
Sob à mesa - discretos e excitados - os sapatos se namoravam -
sem se importar com as movimentações das pessoas no jantar à luz de velas.
Os dela, delicados, rosa-clarinho, bico fino - enfeites azuis nas laterais,
salto gigante - comprados em Paris.
Os dele - abrutalhados - couro-duro, tamanho 43, frente achatada,
feito aqueles antigos caminhões de baú - lembram? -
certamente adquiridos em algum camelô do centro da cidade.
O contraste era perfeito - mas era justamente - o que os aproximavam.
Tocavam-se um no outro, - no começo, timidamente, encostando-se nas pontas, nos lados, nas solas, nas pontas, nos calcanhares.
Era puro tesão entre os sapatos - cúmplices, solitários e silenciosos naquela bela história de amor.
Por cima, os demais comensais se embebedavam entre queijos e vinhos -
embaixo - só carinhos.
Um sapato penetrando no outro - misturando-se, invadindo-se, roçando-se, acariciando-se - chegando a rasgar as finas meias de seda.
Acima, olhares desejosos um do outro, hipnotizados, apaixonados, enternecidos - suores escorrendo, lábios molhados, línguas inquietas, corações palpitantes.
Os protagonistas nem se preocupavam em degustar a farta comida à mesa.