águas de janeiro ou desassossego

então

me vejo a apertar os dentes

contra os dentes

vamos ver se o bob marley

no discman pode me ajudar

enquanto o meu superman pessoal não vem

(e esse é um sonho que não nutro

e sei que ele não virá

a não ser de dentro do meu peito)

a religião de irrita e desassossega

mas estou conformado de que

condenado estou a ser um ateu de fés variadas

– pequenas fés em coisas grandes

bob marley, travesseiro...

e os dentes continuam duros

: teclado e monitor de luz que nina

agora parece que vai rolar

vontade de solidão

vontade de eu

vontade de descobrimento de eu

de sensação de eu

isso: sensação

erva?

não posso: é ilegal

álcool? intestinos reclamam

cigarros? companheiros ineficazes

chá? talvez (náusea)

massagem? quem?

meditação? quem sabe um dia...

os comprimidos

sim, os comprimidos

e minha vida auto-clínica

a chuva foi linda agorinha mesmo

linda, massageando os telhados tristes

bela para minhas retinas: um presente

tão bela

a mesma chuva que destrói casas e pessoas inteiras

venha a noite suave

e venha um dia de sol

sol pra eu admirar e adorar

sol que mata os que secam

à míngua, sem água

e morrem sem trégua

no curso do calendário

nos sertões desse paraíso infernal

a desgraçar toda sorte de infeliz

pobres homens

não são culpados pelas tsunamis

ou pelos terremotos

eles ainda vão inventar

algo melhor que a eficiente sacola plástica

algo melhor que o combustível fóssil

algo melhor que o automóvel talvez

algo melhor talvez que a roda

a roda, que, aliada ao fogo,

permite, a quem pode e quando pode, viagens de férias

um dia haverão aviões de carreira não poluentes?

eu topo viajar de bicicleta ou canoa

quantos topariam?

será mesmo que eu topo?

bob marley foi um bobo

e eu gosto dele

aprecio sua inocência e acho que o amo

e não é difícil amar certos inocentes

ele, seu anel místico e seu maldito messias...

eu não tenho messias

mas tenho esperanças enormes

a ponto de me avexar delas

acredito nessa bosta de bola azul

com esses vermes a errar sobre ela

a chuva parou

o meu casal sob a chuva

é uma de minhas imagens mais queridas

homem e mulher

amantes na chuva

uma das mais lindas quotas de verdade poética

ante o amontoado de mentiras soltas por aí

chova suave e gostoso sobre quem ama

precisamos tanto dessa água

que hidrata, refresca e faz pensar...

...dentes ainda duros

traga-me a feminina calma de que preciso

minha irmã chuva

sempre bem vinda

sou um homem simples

e tão infeliz

quanto o mais feliz dos homens

e

luto contra aquilo que eu mais gosto:

o meu indescritível estado de amor.