AINDA DÁ TEMPO.
Vem, amor, antes que acabe o dia,
antes que o sorriso desmame,
antes que o sol desmaie,
antes que o ziper perca de vez o caminho de volta.
Vem, amor, antes que a fruta caia do pé,
antes que lençol vire fuligem,
antes que o sonho tire suas vendas,
antes que o suor nos enxurre até se fartar da gente.
Vem, amor, antes que voz fique oca e seca,
antes que a paisagem vire trincheira,
antes que a fé seja pisoteada pelo vento,
antes que o rei rasgue sua pança com furor de guerreiro.
Vem, amor, antes que viremos carcaças que os urubus desprezem,
antes que as sombras virem as melhores rampeiras da estrada,
antes que as asneiras ergam seus mastros até o céu,
antes que a guerra seja declarada bem no meio dos nossos lençóis.
Vem, amor, antes que o nosso tudo caiba num cinzero entulhado de bitucas,
antes que a nossa roupa fique tão suja que não mereça lavar,
antes que as horas resolvam dar meia-volta sem parar,
antes que a gente tropece um no outro feito zumbi bêbado e febril,
achando graça nisso.
Vem, amor, antes que a nossa comida seja arrancada do prato da pomba-gira,
antes que essa música deserde seus acordes pra todo o sempre,
antes que Deus peça suas contas e se mande desse mundo,
antes que os nossos filhos nos chutem feito lata velha de um beco sujo qualquer.
Vem, amor, antes que as nossas penas e verrugas aflorem sua valsa derradeira,
antes que o vendaval nos capture feito piratas loucos,
antes que a nossa farsa arranque aplausos dos céus e do inferno,
antes que a gente descubra que o nosso caminho mal começou e
já acabou.