Sarças de Fogo: Milagre - Olavo Bilac

Poema "Milagre", retirado integralmente da décima quarta edição do livro Sarças de Fogo, editado em 1930; portanto, com a ortografia do início do século XX.

E' nestas noites sossegadas,

Em que o luar aponta, e a fina,

Móbil e trêmula cortina

Rompe das nuvens espalhadas;

Em que no azul espaço, vago,

Scindindo o céo, o alado bando,

Vae das estrellas caminhando

Aves de prata à flôr de um lago;

E' nestas noites - que, perdida,

Louca de amor, minh'alma voa

Para teu lado, e te abençôa,

O' minha aurora! ó minha vida!

No horrendo pântano profundo

Em que vivemos, és o cysne

Que o cruza, sem que a alvura tisne

Da aza no limo infecto e immundo.

Anjo exilado das risonhas

Regiões sagradas das alturas,

Que passas puro, entre as impuras

Humanas cóleras medonhas!

Estrella de ouro calma e bella,

Que, abrindo a lúcida pupilla,

Brilhas assim clara e tranqüilla

Nas torvas nuvens da procella!

Raio de sol dourando a esphera

Entre as neblinas d'este inverno,

E nas regiões do gelo eterno

Fazendo rir a primavera!

Lyrio de pétalas formosas,

Erguendo à luz o níveo seio,

Entre estes cardos, e no meio

D'estas euphorbias venenosas!

Oasis verde no deserto!

Pássaro voando descuidado

Por sobre um solo ensangüentado

E de cadáveres coberto!

Eu que homem sou, eu que a miséria

Dos homens tenho, - eu, verme obscuro,

Amei-te, flôr! e, lodo impuro,

Tentei roubar-te a luz siderea...

Vaidade insana! Amar ao dia

A treva horrenda que negreja!

Pedir a serpe, que rasteja,

Amor à nuvem fugidia!

Insano amor! vaidade insana!

Unir num beijo o aroma à peste!

Vazar, num jorro, a luz celeste

Na escuridão da noite humana!

Mas, ah! quizeste a ponta da asa,

Da pluma tremula de neve

Descer a mim, roçar de leve

A superfície d'esta vasa...

E tanto pôde essa piedade,

E tanto pôde o amor, que o lodo

Agora é céo, é flôres todo,

E a noite escura é claridade!

Paulo Kol
Enviado por Paulo Kol em 09/01/2010
Código do texto: T2020150
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