A Grande Noite das Sombras

E então ela disse-me…

“Não aguento muito mais

tenho um amor por verter

nos campos inférteis

da caducidade

mas sinto que esse amor

não irá proliferar

e haverá

algo de mais assustador

de que sentir

que uma coisa bela

se pode transformar na sua sombra

numa espécie intransmissível de horror…?”

Olhando-a com ternura

Nada sabendo o que fazer

Conhecia aquela história bem demais

Mas preferia não a conhecer…

E ela respondeu ao meu silêncio:

“Venho da terra dos sonhos

tenho descendência directa das estrelas

venho exilada

pois a minha gente

deixou de sonhar

e haverá alguma coisa mais assustadora

do que aquilo que mais amamos

nos exigirem

para deixarmos de gostar…?”

Eu compreendia muito bem

e sentia o mesmo género de pavor

a mesma tristeza

o mesmo tipo de dor

dando-lhe então um beijo

que sabia ser um eco sem retorno

um acto desesperado

de quem se despediu à muito

daquilo que tinha mais gostado…

Sentindo

que éramos duas almas à procura do paraíso

e sentindo que as palavras se estavam a esgotar

ela por fim terminou:

“E a minha gente

foi amaldiçoada

pela sua falta de fé

quando caiu a Grande Noite sobre ela

e se transformaram em sombras

daquilo que poderiam ter sido

e as sombras se transformaram

nas pessoas

que essa gente queria ser

sombras que nada me dizem

pois pertencem a outra realidade

a um outro tempo

que os meus olhos nunca verão

eu sou da casta ignorada

que só vive

onde nasce

se põe

e volta a nascer

a portentosa imensidão

eu serei sempre uma proscrita

por demasiado sentir

demasiado sonhar

e é por essa razão

esse motivo

que vivo no vento

não estou

filiada em nada

e nem mesmo o teu amor impoluto

eu posso aceitar…”

E ouvindo estas palavras

chorei pela primeira vez

em mais de mil anos

e me virei para a estrada

de onde tinha vindo

preparando-me para continuar

para além…

onde me sentisse bem

algures no supremo infinito

onde um dia

iria por fim repousar…

Miguel Patrício Gomes
Enviado por Miguel Patrício Gomes em 04/01/2010
Código do texto: T2010590
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