A Grande Noite das Sombras
E então ela disse-me…
“Não aguento muito mais
tenho um amor por verter
nos campos inférteis
da caducidade
mas sinto que esse amor
não irá proliferar
e haverá
algo de mais assustador
de que sentir
que uma coisa bela
se pode transformar na sua sombra
numa espécie intransmissível de horror…?”
Olhando-a com ternura
Nada sabendo o que fazer
Conhecia aquela história bem demais
Mas preferia não a conhecer…
E ela respondeu ao meu silêncio:
“Venho da terra dos sonhos
tenho descendência directa das estrelas
venho exilada
pois a minha gente
deixou de sonhar
e haverá alguma coisa mais assustadora
do que aquilo que mais amamos
nos exigirem
para deixarmos de gostar…?”
Eu compreendia muito bem
e sentia o mesmo género de pavor
a mesma tristeza
o mesmo tipo de dor
dando-lhe então um beijo
que sabia ser um eco sem retorno
um acto desesperado
de quem se despediu à muito
daquilo que tinha mais gostado…
Sentindo
que éramos duas almas à procura do paraíso
e sentindo que as palavras se estavam a esgotar
ela por fim terminou:
“E a minha gente
foi amaldiçoada
pela sua falta de fé
quando caiu a Grande Noite sobre ela
e se transformaram em sombras
daquilo que poderiam ter sido
e as sombras se transformaram
nas pessoas
que essa gente queria ser
sombras que nada me dizem
pois pertencem a outra realidade
a um outro tempo
que os meus olhos nunca verão
eu sou da casta ignorada
que só vive
onde nasce
se põe
e volta a nascer
a portentosa imensidão
eu serei sempre uma proscrita
por demasiado sentir
demasiado sonhar
e é por essa razão
esse motivo
que vivo no vento
não estou
filiada em nada
e nem mesmo o teu amor impoluto
eu posso aceitar…”
E ouvindo estas palavras
chorei pela primeira vez
em mais de mil anos
e me virei para a estrada
de onde tinha vindo
preparando-me para continuar
para além…
onde me sentisse bem
algures no supremo infinito
onde um dia
iria por fim repousar…