Todas as palavras que eu disse ou escrevi
Antes de eu ir embora,
As tuas pernas, liberto-as,
De muito se grudarem ao meu corpo
E terem me protegido com a maciez da primavera
E o ardor do verão.
Liberto, também, os teus lábios,
Não uns dos outros, mas dos meus,
Da cronologia de beijos e palavras bonitas
Que a boca, como mensageira, tem o prazer e o desprazer de dar.
E peço com humildade para que não os entregue – os lábios que alforriei –
A um qualquer passante ou a qualquer paixão.
E que se entregá-los, que seja menor o desejo em intensidade,
Pois na tua boca, ainda carregas a minha.
No entanto, dispo-te da necessidade de ser meu sustentáculo,
Minha escora, meu amparo.
Agora, de algum modo, a partir dessa porta, meu corpo sustentar-se-á sozinho.
Talvez não de pronto.
Talvez ainda reinem trevas por um bom tempo. Mas eu hei de me encontrar dentro de mim.
Vou devolver-te as chaves, mas não aceite que estranhos entrem por meras diversões de fim de tarde.
Vou perdoar teus erros, todos!
Perdoa os meus, pois só assim terás a paz para seguir de pé.
Acima de tudo, liberto também teus olhos, o teu canal mais restrito e mais pulsante.
E agora serão do mundo. Não mais meus.
Faça bom uso. E não se exponha para tudo.
Talvez você devesse usar óculos. Vale como último conselho.
Eu também vou devolver aquelas cartas, mas não vale reler-las.
Nem debulhar-se em lágrimas.
Nem afogar-se em mágoas. Ou lástimas.
A mim, só dê a vida do meu corpo.
Que do resto, é tudo seu.
Deixo-te as velhas lembranças,
As lágrimas e os suores,
Os risos e os pavores
Deixo até a velha caixa de fotos. Não as queime, mas também não as reveja com displicência.
Na tua cabeça, deixo os diálogos, milhões de frases, milhões de falas.
E deixo todas as aproximações delicadas, os cheiros de flores, os elogios, as mãos acalentadoras sobre as costas, sobre os ombros.
Eu deixo o meu ar que se prendeu a ti. E o meu toque sobre a tua pele.
E também, não precisa devolver minhas poesias.
Deixo-te elas também,
Aquelas sem métrica e sem rimas.
Todos os sonetos, todos os acrósticos.
Porque, afinal, mais pertencem a ti, do que a mim.
E ao menos guarde, por favor,
Talvez melhor que tudo,
Todos os poemas que recitei ao pé da cama.
Que nunca se darão ao luxo de serem somente meus ou seus.
São a última parte de nós.