Dois anjos
O velho casarão que heras veste,
tem, bem lá no alto, desfigurado,
um janelão de riga inda talhado
com a rústica escultura do agreste.
Ali naquele quarto um anjo adormecia
enluarado e até o vendo se fazia
de cansado pra ventar bem de mansinho
quando ela suspirava pelo mancebo da flauta.
Fúlvido cabelo em desalinho,
ele vinha toda a noite, noite alta,
para decantar a doce criatura,
tão formosa como flor de rosmaninho.
Encantava-se com a voz de cotovia
que lhe permeava, mesmo das alturas,
a ali a noite deslumbrada adormecia.
Hoje o casarão entranhado nas ranhuras
das escarpas colhe a noite em pleno dia.
Derruiram-se as vigas, torres de granito,
e o tempo lá se vai, derramando o infinito.
Se ontem foi pintura retratando dois amores,
hoje ninguém lembra de dois anjos sonhadores.