Dois anjos

O velho casarão que heras veste,

tem, bem lá no alto, desfigurado,

um janelão de riga inda talhado

com a rústica escultura do agreste.

Ali naquele quarto um anjo adormecia

enluarado e até o vendo se fazia

de cansado pra ventar bem de mansinho

quando ela suspirava pelo mancebo da flauta.

Fúlvido cabelo em desalinho,

ele vinha toda a noite, noite alta,

para decantar a doce criatura,

tão formosa como flor de rosmaninho.

Encantava-se com a voz de cotovia

que lhe permeava, mesmo das alturas,

a ali a noite deslumbrada adormecia.

Hoje o casarão entranhado nas ranhuras

das escarpas colhe a noite em pleno dia.

Derruiram-se as vigas, torres de granito,

e o tempo lá se vai, derramando o infinito.

Se ontem foi pintura retratando dois amores,

hoje ninguém lembra de dois anjos sonhadores.

Chaplin
Enviado por Chaplin em 23/06/2006
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