QUANDO NUNCA MAIS OLHEI PARA TRÁS
Encontrei você pedindo esmola na manhã de hoje,
seu olhar me fez cabrestar o fôlego, dar nó nas articulações do pescoço, coagular todo o meu sangue numa tacada só.
Não esperava encontrar você dessa maneira,
nem, tampouco, quase tropeçar nos seus badulaques que empesteavam
o meu caminho,
como se trouxessem todo o lixo do mundo só para colocar na frente dos meus pés.
Você nem percebeu a minha sombra, o meu cheiro, o meu suor jorrava feito o primeiro gozo da vida,
e nem se deu conta que não conseguia tirar os olhos da sua carcaça,
dessa sua alegoria descompassada e fria,
dessa sua fantasia sem perduricalhos quaisquer.
Mas eu não consegui seguir em frente, até esqueci o que ia fazer,
todos os meus sentidos estavam imantados por aquela paisagem grotesca, como se toda a minha cena ficasse emperrada no único projetor que havia nesse mundo,
como se tivesse aberto a minha porteira para que meus cavalos fugissem desembestados e, todos eles, tivessem esquecido como galopar.
E você estava lá, impassível a tudo isso, esmolando na clemência do final dos tempos, pedindo um centavo, um pedaço de pão já comido e amanhecido, um olhar de compaixão roubado de qualquer um, o que fosse.
Ficamos nesse clima de museu de cera inertes por todo o tempo, num instante que não teimava em passar, um momento que parecia não querer mais se deportar dali, não querer mais esquecer que um dia foi nosso, que um dia reinou em cada fio do nosso cabelo, em cada bereba da nossa pele.
Foi então que percebi que você tinha algo de familiar, alguma coisa em você tragava da minha alma um pedaço que já tinha cerzido antes, que já tinha desbravado em outra farsa, desnudado em outra fungada de vida. Sei lá.
Mas as imagens pareciam água suja, as idéias, outrora enrigecidas, agora se prostravam ocas, surradas, vencidas pelo tempo, banidas pela razão.
Então pude perceber tudo, então pude traduzir o que não entendia, o que não fazia sentido, num quebras-cabeças que já veio montado.
Aquela criatura frangalhada, viscerada e infinitivamente esquartejada do que entendemos por vida, era eu mesmo.
Que havia caído no meu próprio chão sem ter percebido, sem ter anunciado em megafone que um dia tropeçaria nos seus próprios calcanhares, se esborrachando inteiro, flagrando todos os quindins da minha alma, todos esses duendes que vivem rondando meus dias sem trégua alguma, numa alegoria insana e infernal.
Então, confesso, fiz aquilo que só me restava fazer.
Olhei fundo para aquela criatura putrefata que lá estava e insistia em laçar o que restava de mim com a força dos generais de outrora,
e cuspi nela tudo o que tinha direito, num catarro que lavou toda aquela cena para nunca mais.
E assim pude seguir adiante, sem nunca mais olhar para trás.
Nunca mais olhar para trás.