Poeta de botequim...
(Poet ha Abilio Machado. Meados de 90)
Uma vida de nada agitada
A companhia da banqueta
Madeira envernizada
Alta, esguia e às vezes manca
Uns cotovelos repousados
No tampo encerado
Longo a caminho do fim
Um pires com amendoim
O copo na dose preferida
Miúda pelo sovina que mo serviu
O ambiente já é toda névoa
Mais que a neblina lá fora
No frio de alma desajeitada
Dezenas de cigarros
Descansam sozinhos
Aos cinzeiros fumegantes
Os olhos ardem, vermelhos
No barato que ta legal
Na viajem pelas vidas que ora vejo
Em vento e popa
O olhar de caçador animal...
O homem ao canto
Parece até um poeta
Divide as mãos entre a caneta e o copo esverdeado
Rabisca versos no guardanapo já usado
O garçom vez ou outra pede a caneta de volta
Ele reembolsa quando o outro reclama:
__E a inspiração?!
Ao lado o boêmio mão aberta
Promete colares e visons
Até a insana promessa de casamento desperta
Núpcias na França, em Lion...
A piranha se ri escandalosa, se entrega
No fundo ela sabe
Que no sonho do bêbado
Se acreditar se estrepa...
Na ponta do balcão
O político se esbalda
Disserta à garrafa como ao eleitor
Ao copo trava acordos
Faz leis e até é severo como crítico
E para o travesti que sai com ele agarrado na saída:
__Ah meu Darling é doutor!
E lá na fresta da vida estou eu
Curtindo a noite e a mesmice
Se fosse dia
Jamais assim seria
Sem semblante e caretice
Tenho de cada um deles minha herança
Como a noite que oferece uma dança
Depende do ouvido que me escuta
Mas se orelhas não acho
Fico só observando a vida que passa
Meninas que vagam na rua deserta
Mulheres que buscam lampejos de uma aurora toda falsa
Meninos que usam vestidos e saltos altos
Bolsas brilhantes e muita maquilagem
Ou deitados esperando que a sombra abocanhe
Com cachimbos de todo mal lhes devore
Enquanto a lágrima rola ao canto de minha face
Peço que desçam outra garrafa
O cheiro amadeirado da uva me envolve
Ah tudo isso que circula ao sangue
Fecho os olhos um pouco
E com o copo na mão
Me satisfaço!