A dama de cristal

A linda dama foi abandonada sem razão...

Deixada de lado,

Sem explicação.

Ferida, doente...

Corajosamente em pé,

Mas por dentro a chorar.

Ela sabia que seu rei não mais a queria.

Sabia que ele não a entendia.

Que temia o que via nela...

Sua contemplativa e ocasional necessidade de solidão,

Que contrastava-se com seu ar frágil e carente,

Sedento de afeto...

O rei temia que seus sonhos

Desenhados como um traço reto

Se perdessem nas acidentadas curvas

Que haviam no coração dela.

O rei era um homem tolo,

Não entendia o que se passava com ela

Quando rendia-se a sonhos,

Inspirações,

Ficando horas e horas a escrever,

Sem parar...

Aquela frágil dama o assustava,

Ele não a amava...

Não aquela criatura dividida entre dois mundos,

Não aquela mulher que com seu talento iria o ofuscar.

E na calada da noite ele partiu rumo a aventura,

Sem se despedir,

Sem se lamentar...

Após roubar os pergaminhos por ela escritos,

Para com seus belos versos

As damas de outros reinos iludir ao cortejar,

E um feiticeiro pagar

Para que este concedesse a ela um eterno adormecer.

Mas o feiticeiro

Quando adentrou o castelo

Encontrou um pergaminho no chão largado

E leu naquelas linhas doçura e tristeza

Que não justificavam o terrível pecado

Que estava prestes a realizar.

E quando terminou de ler o pergaminho,

Murmurou um encanto,

Originando um silencioso terremoto...

E no canto mais remoto

Ergueu-se uma montanha

Fria, solitária, enevoada...

Aparentemente morta e não cortada por nenhuma estrada...

Lar do feiticeiro,

Que tomou a dama sob sua proteção.

No coração da montanha,

Assumindo a forma de um imenso dragão,

Diante das portas de um salão sem igual

O feiticeiro ficou a velar

Por uma rosa encantada,

De beleza perene,

Que passava o dia a versos sussurrar.

Dentro da rosa,

Ao centro de um parasídiaco jardim plantada,

Encontrava-se a dama,

Pelo feiticeiro transformada

Em uma diminuta estatueta de cristal...

Uma estatueta linda,

Delicada...

Pela vida impiedosamente trincada,

Envolvida pelas sedosas pétalas

Que tentavam protege-la,

Impedindo-a de se quebrar

E toda vez que ouvia um vento mais forte,

Um passo diferente se aproximar,

O feiticeiro se agitava e se punha a rosnar...

As flores estremeciam,

As paredes do salão choravam

E a rosa por um breve momento silenciava,

Antes de voltar a murmurar versos

Em tom sereno e confortador,

Acalmando assim seu protetor

Que por fugaz instante esquecia o temor

E se deliciava em escutar...

Mas entre um verso e outro,

Nos suaves silêncios onde ela calava-se

Para novos versos elaborar

O feiticeiro se punha a pensar,

E sofria com uma amarga, embora remota, possibilidade:

E se alguém descobrisse a entrada de seus domínios em sua ausência?

E se pilhassem seus salões

E destruissem aquele jardim repleto de sonhos e inocência?

Se colhessem sua rosa adorada...?

Desesperado, viu de modo quase real o fato:

Sua dama de cristal, partida em mil pedaços,

Ceifando assim sua alegria...

Seu mundo escureceria.

A felicidade nunca mais o iria visitar.

E o feiticeiro chorou

Ao pensar na diminuta dama estilhaçada...

Se isso acontecesse, nem por ele,

Mesmo auxiliado por todo poder da magia,

Poderia ser consertada...

Seu jardim iria morrer

E ele mesmo explodiria a sua montanha

Em meio a uma tristeza, tamanha,

Que faria, tarde demais, o mundo inteiro notar...

Que o fim chegou

Que um sonho acabou...

Despertando daquele pensamento agourento,

Ele suspirou profundamente e abriu os olhos,

Sorrindo com sincera alegria...

Ainda havia tempo,

Ele bem sabia.

A desgraça não chegara a bater a sua porta.

O jardim vicejava

E a dama de cristal,

Protegida dentro da rosa,

Ainda ficaria horas a fio a encanta-lo

Com seus ternos versos a recitar.

E decidido, se pôs a rir e chorar,

Encantando a única passagem para o coração da montanha

De modo que ninguém que pudesse vir a destruir a dama de cristal

Conseguisse pelos portais de pedra passar.

E é por isto que o feiticeiro nunca mais abandonou a montanha,

Abraçou o bem e virou aos costas para o mal:

Por amor a pequena dama de cristal

Que até hoje está no centro de seu jardim,

Onde todos os dias ele a escuta...

E fica a suspirar.

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Obs: A Dama de Cristal surgiu durante uma partida de RPG que mestrei, anos atras, como uma forma de explicar a razão pela qual um velho feiticeiro recusava-se a abandonar seus domínios, mesmo diante da guerra que ameaçava devastar todo reinado. Os meus amigos, a princípio, não gostaram, mas, depois esta "historinha" passou a fazer parte de nosso Legendarium, como um exemplo de que o amor pode mudar as pessoas.

Zannah
Enviado por Zannah em 31/12/2008
Reeditado em 31/12/2008
Código do texto: T1360522
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