Afável divã
É o deleite suave de uma leve brisa
Que inunda pelos verdes vales os vastos campos
E retorce as rasteiras gramas que dançam
Feito lindas damas em noites de gala
É o suave sentir de uma chuva santa
Que recobre a pele e confunde a saliva
O suor e as lágrimas em telas quase vivas
Mas ainda estáticas e grandiosas
É a pedra que encima e engrinalda
O frio monte coberto de neve
E sem querer cobre a luz
Mas prolonga o dia
São as longas melenas da donzela
Que caem e se dobram e rodopiam e se encurvam
Como arisco ritual de belas ninfas
Angelicais e perigosas
É a negra falena que assusta a noite
E pousa noctâmbula e fúnebre
No corpo vivo que padece
Sem mais dizer
É o rouco surto do insano
O louco alarido do moço sem cor
Que se cobre de pano
E se despe de vida
É o canto canhestro, mas lindo
De anônima ave que não se vê
Antônimo dos gestos e do léxico
De um rude homem qualquer
É um ponto inatingível no espaço
De inenarrável necessidade e cunho
É o vazio do toque, o cerrar do punho
Que se afasta quando se aproxima
É a doce serenata à Lua
Que o Sol, claro de inveja
Faz cessar ao subir aos céus
E encerrar mais uma noite plena
Sou mais nada sem calor seu
Se sou coisa, sou muito pouco
Não sou causa, sou conseqüência,
Não sou livre, não quero sê-lo
Não sou escravo, não sou dono
Não sou meu, mas não tenho quem
Não sou coroa, nem sou trono
Não sou perfume, não sou espinho
Não sou a ponta ou o cabo da faca
Não sou quem mata, não sou quem morre
Não sou o sangue que na veia corre
Ou o sangue derramado no chão
Sou criatura com desnorteado afã
Sou criador com condão mui relho
Não sou você, não sou quem era antes
Sou nosso reflexo, morto, no espelho