INVENTO AS COISAS QUE ACONTECEM
as coisas acontecem porque eu
as invento. na teoria elas já existem,
vogando por aí nos lugares mais
inesperados, como nos olhares fixos
e no piar das corujas, dos mochos cegos
ou nas gargalhadas das hienas famintas.
limito-me a criar um corpo para cobrir
as manchas de tudo o que vejo e
desejar que elas regressem à memória,
ao poço sem fundo onde as congemino.
eu invento as coisas que me acontecem.
por isso espero por elas. premedito-as.
lanço-lhes armadilhas nas encruzilhadas
e dispo-as para vesti-las de novo. as aranhas
da minha imaginação não tecem as suas teias.
sou eu que as bordo, no desfiar da madrugada,
à sombra dos lampiões onde me encosto.
os sons da noite pertencem-me também. sou
eu que os invento e de seguida sou imitado.
os reflexos do sol do dia também os pinto
nas montras e nos metais dos automóveis,
nos anéis das noivas e nos dentes de ouro
dos emigrantes ricos. fui eu que criei o prazer,
o vício e o pecado.
posso contar-te tudo, minha amada.
basta que aceites o acto de ter-te nos braços
e que nunca me deixes, nunca saias do nicho
que te preparei cuidadosamente para ficares
sempre ao meu lado. é isso. então, pega a maçã
e morde-a. como vês também ela, como tu,
o leito, a serpente, a penumbra, nada
verdadeiramente existe. foi tudo inventado
por mim. por favor não fiques triste, meu amor.
ainda hoje vou ter de inventar
outro amanhã.
José António Gonçalves
(inédito.11.10.04)
JAG
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