CELEBRO A LITERATURA

José António Gonçalves

Celebro a literatura.

Calo a loucura.

Pratico a sementeira

nos campos da palavra.

Guardo todos os livros;

li-os ontem, continuo hoje

e tenho alguns para amanhã.

Pessoa veio à janela, tem

um papel na mão: é um poema

para Ofélia ou para sua mãe.

E eu quero saber.

Beckett espera. Godot há-de

chegar, um dia, ao pôr-do-sol.

Camões ama Catarina, Neruda

treme por Matilde, Leopardi

suspira por Sílvia. O papel

circula com mensagens

por dentro da minha cabeça.

É como se fosse um cinzel

modelando uma estátua na pedra

sem que nada ou ninguém

mo impeça. É um poder

que não se interrompe sequer

por vontade própria. Sacrário,

por dentro da sua brancura,

guarda-se um deus, um ser

fantástico, livre, incendiário.

Celebro o escritor. A voz

que lhe nasce, em combustão,

por parágrafos e temores.

Se amamos os poetas

não estamos sós.

É como se alguém nos batesse

à porta e, sem perguntar nada,

nos oferecesse flores.

E nesse momento se morresse,

para se ressuscitar, depois, na fala

da personagem que anda passeando

no espírito de cada publicação.

Bastava que se dissesse, em plena

madrugada: tenho de saber toda

a tua história. Com ela

vou cimentar o meu coração

com os ventos que guardaste

na tua memória.

E escreverei em forma de postal:

celebro a literatura.

Calo a loucura.

Faço-o por bem; nunca

por mal.

José António Gonçalves

(inédito.22.05.04)

JAG
Enviado por JAG em 22/03/2006
Código do texto: T126834