Cantiga flamenca
Ao lado da ponte do cais
Envolto em sujos jornais
Um homem dormia
E sonhava
E acordava
E gemia
Era dia.
Vestia seus sujos sapatos
Expulsava ratos ingratos
Caminhava cantando a cantiga
Da mulher
Que amou
Se matou
A Maria...
A cantar na janela
Sabia, era ela
Soltando os cabelos
Seus cílios, seu pêlos
Sua espádua nua
Oh, deusa andaluza!
Que abusa!
Recusa!
E usa!
Confusa!
Fitava feliz os passantes na rua
Mas quando surgia o sorriso da lua
Ela já sabia que iria
Se entregar
À outro homem
Seu trabalho
Sua agonia.
As portas do vil cabaré
Abriam-se à homens sem fé
O cheiro de fumo e cachaça
Toda a farsa!
A desgraça!
Que arregaça!
A quem passa!
Os corpos já sem coração
Sentavam ao redor do salão
E apaixonados olhavam
E esperavam
E suavam
E babavam
A Maria.
Sapatos lustrosos e ternos de brim
Batons escarlates, ondas de cetim
Eternas amantes valentes
Contentes
Descrentes
Suaves
Serpentes.
Mas quando soava a doce canção
Num instante calava-se todo o salão
E a luz do holofote lembrava o dia
No corpo
Moreno
Surgia
Maria...
O longo vermelho vestido
O tamanco preto e polido
O olhar flamejante da amante
Frieza
Cortante
Da musa
Distante.
O salto ecoando no chão
Os giros de escura paixão
A força da dança que mata!
Violenta!
Maltrata!
Arrebenta!
E marca!
Rodava com a mágoa de toda a sua vida
A dança marcada de mulher vendida
Mulher que tem número e preço
Do tempo
Que ainda
Estava
No berço.
No meio das dores, eis a salvação!
No meio das luzes brilhou no salão
A lâmina prata que mata!
E afundava!
No peito!
Vermelho!
De Maria!
Ah...
O doce vestido
O corpo partido
O sangue
Da morte
Que leva
Maria...
Maria...
Maria...