No Trem da Central do Brasil

O sentido da vida

jamais poderemos saber,

os dias corridos e apressados

jamais poderemos reter.

Observo os outros, próximos,

que ao meu lado movem-se

pelo instinto do viver.

Vão e vêm sem perceberem

que uma sina oculta

cumprem sem merecerem.

Eu também da minha sina

não consigo fugir,

de tudo fiz, de tudo aprendi.

Faculdade de gente rica,

como diziam lá na vila,

profissão de família boa,

que não se consegue à toa.

Pois bem, por mais que tentasse

e tudo fizesse ao meu alcance,

cá estou em pé no trem parador

seguindo obediente pro meu labor.

A trilha do ruído dos trilhos

remete-me às histórias de meu pai,

que cumprindo por si também a sua sina

nos mesmos trens paradores e diretos

apertado e inconformado subia e descia.

Não, não entrego os pontos assim facilmente,

da bolsa de couro macio

saco a caneta e o caderno, paciente.

Anoto as expressões dos pobres coitados

e transformo-os em atores,

essa gente de recursos tão parcos.

Pelo vagão procuro feições tristes

prá rechear os meus tristes escritos,

mas sorrisos ingênuos e olhares candentes

surpreende a minh’alma de poeta reticente.

Volto-me para a minha própria condição,

passageiro desta tão pobre e nobre condução.

Na chupeta pendente agarro a minha mão,

pro balanço do trem não jogar-me na solidão.

Por de trás de meus óculos, disfarçado,

observo Maria de cabelos ondulados

e tosca roupa na moda dos rebolados.

Mastiga um chiclete já meio deformado.

Ela serve, quem sabe,

prá ser a minha heroína dum conto qualquer,

que insisto escondido ali existir,

e naquele cenário tão pobre

tento ainda alguma arte produzir.

Com uma das mãos sustento o caderno

com a outra a caneta retiro do terno.

Próximo à porta apoio as minhas costas.

As histórias de Maria

vou tentando dar forma

com letras tortas.

A sina da vida sofrida de Maria

insisto incluir no meu conto,

mas ela é bonita demais

e distraio-me com o seu encanto.

Um lugar prá Maria, enfim,

não encontro no meu conto.

Contudo logo percebo,

que o personagem que descrevo

sou eu mesmo,

que do trem da Central do Brasil

ainda é prisioneiro.

A sina da vida, insisto,

ainda quero incluir no meu conto.

Mas não é a realidade que de fato vivo?

Pergunto-me com desencanto.

O sofrimento do enredo

que sobrepõe a minha inspiração

vai desfazendo daquele conto

que não consigo continuação.

A minha sina parece que segue

no trem da minha vida

e cá estou de caderno fechado,

caneta no bolso borrado,

observando Maria que com charme

o chiclete ainda mastiga.

O balanço desse sofrimento

atormenta o meu coração

que é solitário de paixão,

Maria, quem me dera,

que prá ter o seu olhar tudo faria

mesmo que fosse por compaixão!

Na estação da Central

o meu sofrimento fita o chão.

O olhar de Maria se foi na multidão.

Meu caderno de escritos agora

descansa triste na minha mão.

Ainda ouço, ao longe, com emoção

o clamor da última pregação.

Anúncios saindo dos alto-falantes da estação

ecoam agora inundando o saguão.

Eu caminho apressado

esbarrando nos braços

de tantas marias

e em tantas mãos.

O poeta desce pro Metrô, frustrado,

e na escada rolante, agarrado.

desvia-se dos braços de esmola, esticados,

pendendo o seu corpo pro lado.

O conto sobre Maria

e o trem dos amontoados

ficarão prá outra viagem.

Quem sabe um dia sem esperar

a inspiração virá

e outras marias com outros penteados

serão heroínas do poeta,

que segue a sua sina

no trem dos desafortunados.