ALMAS AFINS

ALMAS AFINS

Comes um pedaço de pão e alivias

tua fome orgânica; mas sabes

que tua alma nutre-se

das virtudes que te edificam.

Andas com teus passos lentos

e pareces reter o tempo

em tua mudez reflexiva.

Tua alma te diz que não o podes

reter, senão por algum instante,

no íntimo de teu pensar.

Logo o que pensas, voa sob

as asas da ave canora,

e esse tempo pensante

que retinhas,

funde-se ao tempo instintivo

da ave.

E os dois tempos fazem

parte das mesmas ideias:

sendo cúmplices de teu olhar

embevecido à ave, que agora

canta sobre a fronde

da árvore, no final da tarde.

Abres de novo o teu alforje surrado.

Olhas à senda erma,

que semelha à tua solidão diária.

Retiras do alforje,

mais um pedaço de pão; e enquanto

o comes, num gesto humilde,

ofereces um naco à ave; os dois

se entreolham

em sorrisos mútuos.

Ela para de cantar; tão contente,

logo voa e pousa em tua mão.

Tão mansa,

bica aos poucos o alimento,

usando a destreza própria

das aves.

Os dois parecem serem amigos

há muito tempo.

Estão com fome e partilham

do simples repasto

no limiar do anoitecer.

Tanto o mendigo como a ave,

sem um lugar fixo

de morada, vivem em qualquer

lugar, seja andando

ou voando, seguindo a rota

imprevista do tempo.

Debaixo da árvore frondosa,

ele deita-se pra dormir.

Um pouco acima, num dos galhos,

a ave também dá início

ao teu sono. Estão felizes.

Reencontram-se. Retomam

a amizade, iniciada

em encarnações anteriores.

Ele, como alma humana.

Ela, como alma animal.

Ambos são, por assim dizer,

almas afins.

Adilson Fontoura

Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 26/06/2020
Reeditado em 13/10/2020
Código do texto: T6988342
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