ALMAS AFINS
ALMAS AFINS
Comes um pedaço de pão e alivias
tua fome orgânica; mas sabes
que tua alma nutre-se
das virtudes que te edificam.
Andas com teus passos lentos
e pareces reter o tempo
em tua mudez reflexiva.
Tua alma te diz que não o podes
reter, senão por algum instante,
no íntimo de teu pensar.
Logo o que pensas, voa sob
as asas da ave canora,
e esse tempo pensante
que retinhas,
funde-se ao tempo instintivo
da ave.
E os dois tempos fazem
parte das mesmas ideias:
sendo cúmplices de teu olhar
embevecido à ave, que agora
canta sobre a fronde
da árvore, no final da tarde.
Abres de novo o teu alforje surrado.
Olhas à senda erma,
que semelha à tua solidão diária.
Retiras do alforje,
mais um pedaço de pão; e enquanto
o comes, num gesto humilde,
ofereces um naco à ave; os dois
se entreolham
em sorrisos mútuos.
Ela para de cantar; tão contente,
logo voa e pousa em tua mão.
Tão mansa,
bica aos poucos o alimento,
usando a destreza própria
das aves.
Os dois parecem serem amigos
há muito tempo.
Estão com fome e partilham
do simples repasto
no limiar do anoitecer.
Tanto o mendigo como a ave,
sem um lugar fixo
de morada, vivem em qualquer
lugar, seja andando
ou voando, seguindo a rota
imprevista do tempo.
Debaixo da árvore frondosa,
ele deita-se pra dormir.
Um pouco acima, num dos galhos,
a ave também dá início
ao teu sono. Estão felizes.
Reencontram-se. Retomam
a amizade, iniciada
em encarnações anteriores.
Ele, como alma humana.
Ela, como alma animal.
Ambos são, por assim dizer,
almas afins.
Adilson Fontoura