ABORTO

Eu encontrava-me no fundo
da barriga do mundo,
quando um dia, de repente,
percebi que a minha fantasia
estava doente.
Eu não brincava, não lia...
O dia inteiro vigiava os ponteiros
do meu relógio de pulso...
O tempo sagrado, cronometrado,
não me permitia impulsos.
Olhei para alguns livros na estante...
Lembrei Fernando Sabino, Machado de Assis...
e concluí, que deixei de ser menino
quando deixei de ser feliz.
Compreendi que a leitura
é um alimento que provém
a ousadia de sonhar.
Que nada é definitivo
e que se estamos vivos
é preciso caminhar.
Neguei-me pois ao cabresto
daquele mundo sem textos
no qual pude compreender
que quem lê pode ser o que quiser,
mas quem não lê,
nem ao menos sabe 
aquilo que quer ser.
E nesse diálogo incrível
que o texto torna possível
eu fui abortado do lugar comum.
Já consigo me ver
como não sendo tão somente mais um.
Reencontrei o menino
que misturava as cores
para pintar seu destino.
E ele me disse, ser pura tolice
querer ir longe demais
pois devemos ter sempre ao nosso alcance
a possibilidade da chance
de voltarmos  atrás
e, se conveniente,
tomarmos uma nova direção
que seja coerente
com aquilo que manda
o nosso coração