FIM DE ANO / MITOSE / GAMARRA
TOLICE DE FIM DE ANO I (10 DEZ 11)
A cada ano renova-se a esperança
de dias melhores pela nossa frente,
como se algo se tornasse diferente
e o representam como uma criança,
enquanto o ano velho, que descansa
é mostrado como ancião velho e doente,
após só doze meses, quando a gente
bem mais que um ano no geral alcança...
Por que então, tão só porque termina,
deveria o ano antigo envelhecer,
bem ao invés de se tornar adulto?
Ou ser guardado em imortal cantina,
em que goles se pudesse ainda beber
dos dias bons conservados em seu vulto?
TOLICE DE FIM DE ANO II
Talvez seja porque, mais raramente,
recordamos os dias de prazer
e pelas costas o queiramos ver,
com a indiferença que nos fez descrente.
Talvez que o Ano Velho se apresente
como um Papai Noel a se esquecer
de qualquer benfeitoria nos trazer:
cresce a criança e não ganha mais presente...
E então esse ano antigo desprezamos,
em rancoroso desapontamento:
não nos trouxe aquele beijo que pedimos.
E desse modo decrépito o julgamos
e deixamos para trás o seu tormento,
enquanto a novas esperanças nos abrimos.
TOLICE DE FIM DE ANO III
Isso é mais claro no viver da Europa,
quando o final do ano traz a neve
e rara é a árvore que então se atreve
a nos dar proteção sob sua copa.
No fim do ano, mais tristeza emboca,
enrolada contra o frio do dia breve,
sem qualquer aconchego ou brisa leve:
é branca a estrada sob a branca touca.
Traz geada e traz saraiva e à lembrança
vêm os cabelos brancos da velhice.
Por sobre a neve o passo é mais difícil
e facilmente o imaginar alcança,
no passo trôpego e na memória físsil
a tal imagem de que um velho então se visse...
TOLICE DE FIM DE ANO IV
Mas é verde o fim do ano no Brasil,
feito de chirca roxa e de alecrim,
de camomila, de trevo e de jasmim,
cálida a brisa sob um céu de anil.
Não se enxerga nas janelas o buril
da geada a esculpir o seu cetim.
É só o rocio que pinga para mim
e para ti, em seu fluir gentil...
Por que então representar por velho
esse tão forte e augusto semeador,
que os prados enche ainda de mais vida?
E por que mostrar janeiro nesse espelho
de uma criança de fraldas, sem pendor
para colher o que deixou na despedida?
TOLICE DE FIM DE ANO V
Nosso Ano Velho se mostra ainda robusto
e o ano entrante já é um adolescente:
colhe o milho e o azevém mais redolente,
enquanto o rega com o suor do busto.
Talvez devêssemos criar, a nosso custo,
um Ano Velho em Maio, já impotente
para conter o granizo mais pungente,
gastas as forças no rosto mais vetusto...
E em Junho, um Ano Novo bem vestido
e não somente de fraldas ou de cueiros,
capaz já de enfrentar as tempestades...
Pelos frutos do verão fortalecido,
nessa aguardança dos Setembros seresteiros
da primavera de amores e saudades...
TOLICE DE FIM DE ANO VI
Passa o solstício e se encurtam mais os dias,
no desperdício incontido de uma infância.
Esse contraste reflete a mesma instância
dos sorrisos pueris nas manhãs frias...
Mas entre nós, quantas vezes te iludias
com os suspiros envoltos em intrigâncias
desse verão de quentes alianças...
Dezembro canta diversas melodias,
sem revelar que em Janeiro chega o estio
e a relva verde transforma em amarela,
só interrompido por trovão e tempestade.
Quem sabe sejam seus gritos o pavio
da vela acesa solitária em tua janela
e que tais choros te recordem mocidade.
TOLICE DE FIM DE ANO VII
Porque, de fato, até sei por que Janeiro
deva ser jovem, logo após Dezembro...
Como veríamos velhice no Setembro
da primavera de caráter alvissareiro?
E certo existe mocidade em Fevereiro,
nos carnavais que desde a infância lembro,
enquanto Abril já é do outono membro
e Junho já pertence ao inverno inteiro.
Embora saiba que todo esse alvoroço
que se renova a cada fim de ano,
é mais reminiscência do passado...
Desse inverno europeu, atribulado,
que tanto lembra o lento desengano
do rei que entrega o trono ao rei mais moço.
TOLICE DE FIM DE ANO VIII
Mas para mim, esse final de ano
não me enche de tristeza ou de esperança.
Não espero por desastre ou por bonança:
só mais um dia de ilusório engano.
Mesmo porque o calendário gregoriano
já se encontra defasado e não alcança
os equinócios em sua gentil mudança:
sua precessão causou-lhe lento dano...
Portanto, meu amigo e minha amiga,
Não te desejo nada de especial,
salvo o que já te auguro a cada dia...
Que seja o amor teu dote natural,
corpo saudável em mente bem sadia
e que teu passo à luz do Sol prossiga...
MITOSE I (1982)
almejei
de há muito pressenti que bem metade
receei
vagueava
de mim faltava, idônea companheira,
sobrava
meiga
que sempre amante fosse e alvissareira
honesta
de nós
se orgulhasse de mim pela cidade...
sem pejo
mostrasse,
que me ostentasse, com felicidade,
escondesse,
enriquecesse
que completasse o quanto me faltava
iluminasse
amparasse
que me ajudasse a achar o que buscava
indicasse
parelha
e que suave fosse, e sem maldade...
segura
só vivo
porque preciso desse apoio, tanto!...
dependo
vender
poder confiar a alguém o coração
iludir
certeza
sem temor de gracejo ou zombaria..
desaponto
rara vez
que tanta vez me fez brotar o pranto
até talvez
presente,
no passado, nas fauces da traição
permanente,
fiel
de quem leal a mim só deveria...
doar-se
MITOSE II
sempre
e ainda hoje almejo o mesmo dom,
agora
somar
que em meu unir assim me dividisse
multiplicar
ardor
que em meu calor dissesse o quanto disse
fulgor
gorjear
e que, ao cantar, adotasse o mesmo som.
trautear
no piscar
que o parpadear das pálpebras um só tom
ao bater
entoar
de uníssono cantar manifestasse,
louvor
projetar
que ao estender da mão, eu a alcançasse,
revirar
procela
que a tempestade se esfizesse em tempo bom.
tormenta
ansiava
até queria, ao suspeitar ser impossível,
almejava
mirem
que vejam dois com o mesmo e igual olhar.
anseiem
se acha
em tudo quanto existe há diferenças.
se perde
desfazem
as coisas se mantém no inexaurível
refletem
estranho
e é tão difícil almas iguais amar
idílico
duvidar
quanto de fato partilhar das mesmas crenças.
balbuciar
MITOSE III
enfim
afinal -- e são palavras de consolo,
realmente
conhecimento
em sendo iguais, vem o aborrecimento,
pressentimento
esperado
não há surpresas no diário alento,
enfado
trocamos
ambos queremos o sabor do mesmo bolo.
negamos
medíocre
pelo menos, é o constante julgamento,
afanoso
calculo
que bem suspeito trazer algo de dolo,
renego
vasto
que amor tão grande não há aonde pô-lo,
inusitado
permite
nem se revela ao humano entendimento.
concede
ansiava
mas não queria fosse assim e espero
contava
bem
um ser assim a meu lado ainda encontrar,
alguém
pundonores
com interesses bem iguais aos meus.
tresloucares
ponderar
e que saiba apreciar o quanto quero
palmilhar
cadeia
nessa surpresa do esperado revelar
mortalha
redis
de que sejam meus sonhos iguais aos seus.
desejos
MITOSE IV
calculo
ainda acredito que exista por aí,
me iludo
antro
escondida em qualquer casa, qualquer rua
templo
donzela
essa mulher em cuja mente nua
prenda
adivinhar
possa encontrar o mesmo que sofri.
garimpar
se espantou
sei que até desistiu de achar aqui
ainda espera
equilibre
quem a compreenda no instante em que flutua,
controle
a contemple
quem lhe sorria na hora em que se amua:
a desvista
suas mágoas
perdeu seu tempo igual ao que eu perdi.
quimeras
em dimensão
eu sei que em algum lugar, perto de mim
em sofreguidão
esconde
ela se encontra, já desiludida
insere
de ouro
dos sonhos meigos do tempo de criança;
falsos
quiçá
talvez por ela eu passe mesmo assim
quem sabe
mova a testa
e apenas a saúde, em comedida
contemple
inerme
visão vazia e despida de esperança.
fugaz
MITOSE V
nesse embalar
e então, se a vir de novo, algum acaso
se a perceber
contemplemos
permitirá que nos reconheçamos,
confidenciamos
a centelha
que haja um lampejo e, súbito, vejamos
faísca
notamos
o que não vimos no passado raso.
bebemos
relance
que, num repente, vertido seja o vaso
espasmo
aljava
da cornucópia de amor que assim buscamos
embornal
escuridão
e que seja a solidão que detestamos
solidez
inteira
lançada impura para o seu ocaso.
inerme
fanal
estás aí, mulher a quem procuro?
metade
destarte
partilharás assim de minha mitose?
doravante
par
seremos um nessa falsa divisão?
mescla
anseio
porque te busco com meu peito puro,
almejo
seiva
a gotejar meu sangue, em lenta dose,
linfa
desnudar
com que te irei repartir meu coração.
revelar
GAMARRA I (2005)
a espera indolentE >< Se faz ouropel;
o anelo freqüentE >< Da dor sem quartel,
se esvai redolentE >< De néctar e mel,
e exclui, finalmentE, >< Batina e burel.
a espera é inconclusA >< Mas torna-se bela
a graça da musA >< Espelha-se nela,
após tanta escusA >< (A espera é por ela.),
abriu-se uma eclusA >< Que dor me cancela.
se ela me amA >< Meu corpo é exul;
se enfim me reclamA >< Às flores do sul,
meu peito conclamA >< Essa dama de azul...
aberto meu peitO >< Aqui venho me expor
enfim reconheçO >< Quão puro esse amor
aberto seu peitO >< Em pleno candor...
GAMARRA II (2 nov 11)
a vida me freiA >< E nega o progresso
a vida me teiA >< Atrasa o regresso
a vida me ateiA >< Em fogo confesso
a vida me enleiA >< Do amor já me esqueço
a vida me prendE >< Fugir não consigo
a vida me atendE >< Perdi meu abrigo
a vida me acendE >< Procuro o perigo
a vida me fendE >< Alcanço o jazigo
a vida sentI >< Na raiz dos cabelos
a vida sofrI >< No som dos desvelos
a vida sem tI >< Cem versos de gelos
à vida sujeitO >< Em tudo obedeço
à vida escorreitO >< E nada mais peço
à vida meu peitO >< Pagou todo o preço.
GAMARRA III
cantei para a vidA >< Fatal serenata
chorei pela vidA >< Minha pena barata
falei para a vidA >< Em pura cantata
bebi pela vidA >< Seu leite e sua nata
em claro desejO >< Amor procurei
em vívido beijO >< O sexo eu achei
no mais claro ensejO >< Não me iluminei
na luz eu me aleijO >< E não rebrotei
sob o céu azuladO >< Encontro-me nu
na noite isoladO >< Sou pena de anu
comi estragadO >< Meu prato de angu
e a mágoa que descE >< No meu coração
no vácuo da precE >< Sem ter solução
é aranha que tecE >< A inócua paixão...
GAMARRA IV
e nessa agoniA >< De puro alecrim
encontro harmoniA >< De verde jardim
encontro a poesiA >< Jogada pra mim
e na aleivosiA >< Encontro-me assim
a falha do planO >< A mim pouco afeta
o corte do danO >< Ferida discreta
a fúria do canO >< Eclusa incompleta
na luz desenganO >< Mas saga dileta
e quanto sofrI >< Consegui transformar
não me arrependI >< De impuro pecar
fui tolo e temI >< Mais culpas buscar
e a vida não cedE >< Passando depressa
não mais me concedE >< A dádiva espessa
tampouco me pedE >< Que mais eu padeça.
O título, Gamarra ou Martindale, foi escolhido em função do som. É simplesmente o conjunto que prende o freio às rédeas do cavalo. Metaforicamente, eu tenho de puxar minhas próprias rédeas para me conter do abraço -- ou a musa se encarregará de fazê-lo de per si... Este é, naturalmente, um poema simbolista, um soneto duplo com oposição. Preciso dizer o que "as flores do sul" significam? E naturalmente é um soneto duplo, apesar do formato original.