São João da Boa Vista-SP, 03 de Junho de 2003


Prezada Amiga,
 
Quando falamos de suicídio, há algumas semanas atrás, ao final de uma aula, pensei em acrescer algo e lhe enviar com este texto.
Como lhe disse hoje, gosto de tentar entender as coisas, e isto por vezes significa alguma dor, como a de vivenciar uma situação ou imaginá-la.
No caso do suicídio, creio que algumas vezes o imaginei, sempre questionando o por quê. Porém, foi só quanto à vontade,  nunca produzi qualquer ação. Mas aprendi algo com a 'vontade' , experiência que procureir avaliar.
De modo muito sintético, creio que esta atitude é a completa negação de si, associada ao esgotamento “racional” de qualquer possibilidade ou esperança, o que gera desespero, onde se vê acuado sem a possibilidade de continuar.
Sem dúvida há uma situação de isolamento que pode ser  cotidiana e real ou um estado psíquico. Seja no que se refere ao plano do cotidiano humano, seja naquilo que poderíamos dizer como “espiritual”. É um não crer em si, não crer nos outros e não crer em mais nada além de si.
Há também que descrer na possibilidade de algo além da vida material, afinal quem se mata deseja não viver mais, seja no plano da vida conhecida, seja numa possibilidade além da vida.
Quanto a este além, não podemos saber exatamente como é, mas deve ser algo terrível para um indivíduo que pensou aniquilar-se, e o fez, escobrir-se, depois, continuando a existir.
Usando de algum sarcasmo, é no mínimo frustrante. Isto posto, imagino que crer em algo além da vida funciona como uma barreira em livrar-se dela.
O texto abaixo é referência ao suicídio, o frasco é uma metáfora para co orpo, enquanto descrevo as sensações.
O “límpido e transparente”, é a ideia da sujeição às aparências, belo por fora, mas vazio por dentro. Não o vazio do vácuo, mas o vazio de presença de afeto, o vazio que deseja ser preenchido.
 Por fim, o movimento “interno” , que eu denominaria com o termo “psíquico”. Entendendo-o como uma interação de sentimentos e pensamentos, formando o “psiquismo”.
Trata-se de algo imaterial, porém perceptível, associado às atitudes externas.
O frasco faz o papel da vítima inofensiva, querendo demonstrar a “passividade” do corpo, vítima real da ação de aniquilação, onde uso como pano de fundo filosófico a crença no existir pós-vida, para concluir o suicídio como inútil. E hoje acrescento apenas como ato “protelatório”.
Por fim, no que se refere à conclusão, um desfecho literário com algum mistério. Não se sabe se o frasco em cacos significa que o agente se matou ou na, ou se foi mero substitutivo do ato. Aqui confesso minha intenção: foi o segundo caso.
É isto aí, perdoe-me se me alonguei, mas é que, independente do existir ou não a tal “interioridade”, o fato é que há “algo”, e este “algo”, seja lá onde estiver, é para mim um desafio. Se um dia saberei ou talvez não, se valeu a pena , ou não, só o tempor responderá...
Concluindo, na minha opinião, no que se refere-se a suicidar-se, não vale a pena, é ato protelatório.


 
O Frasco 

A imagem de um frasco vazio.
Uma metáfora transformando-se em substantivo.
O ar avançando para dentro de pulmões
que, passivamente, o recebe.

O sangue que mecanicamente circula
pelo corpo, inundando o aparelho cardíaco.

A falta de sentido, a ausência de objetivo,
o cansaço estressado do cotidiano.

A multidão dos problemas,
as fugas paliativas, a aversão pela árida realidade.

A clausura compulsória,
a vontade nitidamente acuada, a armadilha oculta.

O nervoso silêncio, a imobilidade do corpo,
os fios de comunicação estão rompidos.

O frasco está vazio, o límpido vidro transparente,
a sua ilusão de fascínio.

O seu falso brilho
talvez oculte a lembrança
do verdadeiro brilho de um olhar.

A força está frágil, 
músculos e nervos estão tensos,
os punhos querem agredir.

A razão tenta conter o impulso,
a moral enche-o de vergonha e culpa,
tortura-se.

As horas são trucidadas pelos ponteiros do relógio,
existe uma violência dissimulada.

Uma terrível agressão
que quer fazer-se de branda,
uma fervura que se finge morna.

Os dentes de cima
querem agredir os debaixo,
o corpo redesenha-se em inflexibilidade.

O frasco tem lá sua beleza, mas está vazio. 
A própria alma parece estar vazia.

Tudo incomoda os sentidos,
cria-se uma irritabilidade intolerante,
perde-se a razão.

Quer ter a posse de algo
que de fato parece não existir.
Um desejo irrealizável,

uma perturbação
que insiste em permanecer
como que assombração psíquica,

gerando uma inquietação agressiva,
criando uma resposta, uma justa vingança.

Determinando o estado defensivo
que acabará por alimentar obstinado ataque.

Uma contundente agressão,
uma tentativa desesperada de minar o opositor.

O inimigo misterioso
que não consegue encontrar,
criando algo de demência.

Um olhar extasiado e cheio de ira,
encontrando pela frente o inofensivo frasco.

A vítima passiva
de um poderoso tapa,
sendo aniquilado em infinitos cacos.

Gilberto Brandão Marcon
Enviado por Gilberto Brandão Marcon em 19/05/2009
Reeditado em 30/05/2009
Código do texto: T1602869
Classificação de conteúdo: seguro
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