AMOR DE SORVETE / PORTÃO DE GELO / BATINAS BRANCAS
AMOR DE SORVETE I (01 mar 11)
Seus olhos apertados em sorriso,
os dois se fitam, quais namoradinhos.
Trazem nas mãos rosados sorvetinhos,
que irão pingar em instante ainda indeciso,
se não ganharem antes beijo liso
das línguas rosas de ambos garotinhos...
Mas parecem recordar, em seus risinhos,
de algo importante para o infantil siso.
Talvez sejam irmãos, talvez amigos,
mas certamente têm cumplicidade
e não se importam de sujar os dedos
essas crianças de dias tão antigos,
em que tomar sorvete, na verdade,
era um pretexto para troca de segredos.
AMOR DE SORVETE II
A foto é em branco e preto, mas posada;
sua indumentária foi escolhida a dedo.
Talvez seja esse mesmo o seu segredo:
que finjam ser avós em sua morada...
Pode até ser em uma casa abandonada,
em que brincam de fantasmas, sem ter medo.
À luz do sol há um diferente enredo
do que nas horas antes da alvorada...
Eles se assentam sobre o degrauzinho,
um pouco baixo até para sua altura,
pezinhos tortos e os joelhos levantados.
De calças curtas e branco vestidinho,
eles se olham, com malícia pura,
por leve toque de condão tocados...
AMOR DE SORVETE III
Um vaso de metal fica à direita;
um outro, à esquerda, parece de cimento.
Mas nem reparam em seu duro assento:
são os dois membros de privada seita...
A ambientação em torno é tão bem feita,
captado de antanho e sentimento,
que até os odores se percebem num momento
desse verão que o parzinho ainda aproveita...
É um perfume de crianças bem lavadas,
roupas trocadas depois de tomar banho,
mais o cheiro de morango do sorvete.
São os olores das brisas apressadas,
dos vasos feitos de cimento e estanho,
em que o cheiro dos sapatos se intromete...
AMOR DE SORVETE IV
Mas os sorvetes têm de ser lambidos
bem depressa, ou mais depressa escorrerão...
Quem sabe apostaram lamber mão
um do outro, sobre os pingos escorridos...
Porém o instante em que se acham envolvidos
é tão fugaz quanto as crianças são:
adolescentes viram... E a paixão
de outro tipo logo os têm acometidos.
O tempo passa como pó de giz:
eles brigam e choram de mansinho...
E, no final da infância ameaçada,
esse amor lhes escorre do nariz,
como coriza, um fio de ranhozinho,
nessa primeira lágrima tombada...
PORTÃO DE GELO I (2 mar 11)
No gelo azul abriu-se uma passagem,
tal como de formato artificial.
Existe até um socalco natural,
qual fora aberta por metálica engrenagem.
Do lado oposto, passa a marinhagem,
em um pequeno clipper de uma vela.
Por entre os icebergs não congela,
mas seu destino busca com coragem.
Na realidade, no barquinho aberto,
há até mais segurança que em gigante
e desafiadora embarcação,
cujo casco, se chegasse muito perto,
seria rasgado, em talho triunfante,
por esses dedos frios sem compaixão.
PORTÃO DE GELO II
O barco avança, recortado ao céu,
tão branco que se une a seu reflexo,
bordando sobre as águas um amplexo
que une o véu do céu ao mar do véu.
O barco avança a espreitar o léu...
À sua frente se ergue um amplo nexo,
outra montanha azul do mesmo sexo
que esse portão de gelo, ciano réu,
que talvez tenha sido sentenciado
a ser pelo outro bloco aferrolhado,
numa inserção quiçá até sexual,
gelo no gelo, em cópula fanada,
cujo calor, em água degelada,
se espalhará pelas ondas do canal.
PORTÃO DE GELO III
Porém o barco avança e essas silhuetas
que manejam o cordame e o leme tocam,
por entre os dois icebergs logo embocam
seu barco a vela com intenções secretas...
A vida é feita assim, dessas completas
missões em que os humanos tanto enfocam
ou dos fracassos em que tantos sufocam
vidas voltadas para pungentes metas...
Mas pelo menos, a singrar o mar,
não se deixam levar só pelo vento,
mas põem-se a controlar o seu timão,
enquanto tantos outros, a vogar,
como medusas, em brando movimento,
se deixam transportar sem reação...
PORTÃO DE GELO IV
Qual o destino que devo procurar?
Deixar que o oceano me leve aonde quer,
sem a desculpa de furacão sequer,
que para longe possa me arrastar?
Ou essa roda do leme conservar
firme nos dedos, sem temer qualquer
borrasca amarga perante meu mister,
para meu próprio fado dominar...?
Que importa seja naufrágio meu destino
enquanto eu giro a roda do timão
e enquanto as velas exponho contra o vento!...
Se corro empós meu sonho pequenino,
mas que não cabe dentro ao coração,
ao explodir em pleno sentimento...?
BATINAS BRANCAS I (6 mar 11)
Um sol pálido de azul-acinzentado
rebrilha de viés sobre essa rua.
A neve do passeio em água sua,
derretida por calor polarizado
ou, quem sabe, porque sal foi derramado,
bem de manhã, por sobre a neve nua,
talvez por caminhão, talvez por grua:
tornou-se a neve em lamaçal gelado...
Mas um pouco acumularam na calçada,
dezenas de montículos, como bolos,
cuja existência será em breve ameaçada.
Só quem tiver coragem tentaria
percorrer esta rua -- ou então tolos,
em sua ânsia por tirar fotografia...
BATINAS BRANCAS II
Mas o que chama a atenção, no gelo envoltos,
são as árvores e automóveis estacionados,
que deixaram toda a noite ali parados,
com os motores dormindo a sonos soltos...
Os carros brancos parecem esculturas,
o trabalho de um artista caprichoso,
que esculpiu, em detalhe cuidadoso
essas imagens de lanosas viaturas...
Mas à direita da rua, alguém lançou
alguns jatos de água quente e então ligou
os motores desses carros mais visíveis.
Porém na entrada de uma rica residência,
existem grades sob o piso, conducíveis
de calor, com mais prática eficiência.
BATINAS BRANCAS III
Contudo, são as árvores vestidas,
fila de monges, em túnicas cinzentas,
gordas de neve nessas noites lentas,
quando o gelo as circunda entretecidas.
E nos seus galhos há barbas esculpidas
pelo vento rodopiante das tormentas...
São pingentes de gelo, quando atentas:
flocos de neve em mil gotas derretidas.
São penteados pelo frio em cabeleiras,
imóveis, a pretender mobilidade,
no capote acolhedor dessas brancuras,
tal como se essas brisas marinheiras
as quisessem revestir, por crueldade,
em mantos brancos de penitências duras.
BATINAS BRANCAS IV
Ou quiçá tomou a geada a iniciativa
e trazendo uma tigela de alvaiade,
puro brancor de maior opacidade,
para tornar o negror em cor ativa,
foi insinuando, em pincelada esquiva,
gota após gota, em mansa atividade,
buscando espuma que das águas sobrenade,
sobrepelizes dessa alvura viva...
Porém as árvores parecem suplicar,
os negros galhos estendidos para o céu,
que o sol derreta a renda que as recobre,
como se fosse a própria seiva a congelar
e respingasse em esgarçado véu,
que, ao sabor do vento, ondule e dobre.