Se eu sorrisse...

Se eu sorrisse

Ao acordar

E, ao abrir os olhos vivos saudasse meu fiel e confessor travesseiro

E também contemplasse todas as paredes

Porta e janela do meu quarto

Todos ainda em silêncio…

Sabedor que sou

Da escuridão que habita tantos olhares

E, mesmo assim

Conseguem ver e sorrir à claridade escura de uma nova manhã.

Se eu sorrisse

Ao tocar o chão ainda gelado de uma madrugada úmida e fria

E cantasse canções de felicidade

Ao trocar os primeiros passos que me levam até o banheiro…

Sabedor que sou

Da impossibilidade de transitar livremente

Que arrebata tantos andares

E, mesmo assim

Conseguem se locomover e sorrir

Dando voltas imaginárias no mundo real.

Se eu sorrisse

Ao abrir a boca sadia em frente do espelho

E, escovasse os meus lindos dentes brancos…

Sabedor que sou

Que muitos os perderam pelo caminho da vida

E outros os possuem

Embora sejam apenas armazenadores de detritos

E, mesmo assim

Sorriem para cada sorriso.

Se eu sorrisse

Ao sentir a ducha de água fria

Como se esta representasse aquela belíssima cachoeira natural

Que cai pelo meu corpo ainda quente

E me enche de energia e alegria…

Sabedor que sou

Que tanta lama e tantos córregos fedorentos servem de água

Para tantas crianças e tantos velhos

E, mesmo assim

Sorriem à sua total ignorância

Satisfeitos que estão da condição de estarem ainda vivos.

Se eu sorrisse

Ao abrir as portas do guarda-roupa

Podendo escolher entre tantas roupas e sapatos

Às vezes comprados sem a mínima necessidade…

Sabedor que sou

Que tantos seres humanos são desprovidos de qualquer indumentária

E, mesmo assim

Sorriem e sentem toda a satisfação do mundo

Ao olharem para os seus corpos seminus

Apreciando os trapos que cobrem todas as suas vergonhas.

Se eu sorrisse

Ao me sentar à mesa e prover meu corpo sadio

Com um café da manhã repleto da mais variada seleção de frutas

E de outras guloseimas…

Sabedor que sou

Da impossibilidade de se nutrir

Não só pela manhã, mas durante todo o dia

De uma humanidade faminta

E, mesmo assim

Sorriem para migalhas

Que lhes caem no estômago vazio e roncador.

Se eu sorrisse

Ao passar de olhos cansados

Pelo porteiro do condomínio onde resido

Habitação servida de todo conforto e segurança…

Sabedor que sou

Da situação habitacional que vive o mundo

Desprovido das condições básicas de moradia

E, mesmo assim

Esta população sem teto sorri para os seus barracos

Suas palafitas e seus casebres de papelão, improvisados sob viadutos.

Se eu sorrisse

Ao encontrar o trânsito das ruas e avenidas completamente congestionado Buzinas acionadas por nada

E sirenes implorando passagem para enfermos e presidiários...

Sabedor que sou

Que tantos se amontoam pelos corredores dos ônibus e metrô

E outros, nem estes meios de transporte podem utilizar

E, mesmo assim

Chegam aos seus destinos suados e sorrindo

Pois conseguiram atingir os seus objetivos.

Se eu sorrisse

Por ser abordado por um flanelinha no semáforo

Que com os seus apetrechos de limpeza

Se oferece para lavar o pára-brisa do meu carro.

Sabedor que sou

Da possibilidade deste mesmo menino estar apto

E inteiramente disposto a me assaltar durante esta parada

E, mesmo assim

Canta os versos de uma antiga canção

E me sorri quando eu não lhe dou atenção.

Se eu sorrisse

À recepcionista que recebe todos os dias tantos olhares distraídos

E outros tão desprovidos de humanidade…

Sabedor que sou

Que como tantas outras está fatigada

Pelo trânsito e por tantos outros problemas

Que assolam nossa civilização ocidental

E, mesmo assim

Me sorri um sorriso sem pretensões

Tentando fortalecer o meu ser a enfrentar a maratona de mais um dia.

Se eu sorrisse

Ao receber o bom dia da secretária

E, com este seu gesto caloroso

Receber todos os compromissos

Que ocuparão o meu cotidiano profissional…

Sabedor que sou

Que uma massa imensa de trabalhadores estaria disposta

A receber este mesmo bom dia

E sem entenderem o por que, compram jornais de classificados

E enfrentam filas e mais filas à procura de um emprego

E, mesmo assim

Sorriem para a esperança.

Se eu sorrisse

Ao sair apressado do escritório

Deixando serviços atrasados na minha escrivaninha

Rumo ao shopping center para comprar um presente para o meu filho

Que jamais me pediu qualquer presente

Aliás, me pede apenas um pouco de atenção, nunca presentes…

Sabedor que sou

Que tantas crianças estão abandonadas pelo mundo

Sem pai nem mãe

E, mesmo assim

Sorriem com os seus olhinhos inocentes

Ao receberem uma simples bala de caramelo.

Se eu sorrisse

Quando ao regressar para casa

Encontrasse aquele mesmo menino, que pela manhã

Tentou lavar o pára-brisa do meu carro

E agora, acompanhado de outros meninos

Oferece chocolates a todos os motoristas que param no semáforo vermelho...

Sabedor que sou

Que meu filho acabara de regressar do curso de informática

E tivera inúmeras oportunidades, que a maioria das crianças não têm

E, mesmo assim

Sorriem àqueles que confiam nas suas mercadorias

Possibilitando assim, o pão daquela noite.

Se eu sorrisse

Ao repousar meu corpo

Fatigado por mais um dia de trânsito, trabalho e trânsito

Na cama que acomodará os meus sonhos…

Sabedor que sou

Que para tantos não existe descanso macio, nem tarefas diárias

Tampouco sonhos

E, mesmo assim

Sorriem para qualquer repouso

Ou para qualquer tarefa que lhes são oferecidas

E quanto aos sonhos?

Estes são o real motivo para tantos sorrisos

Pois nunca perdem a esperança.

Se eu sorrisse ao acordar e…

Se eu sorrisse ao viver e…

Se eu sorrisse ao dormir e... Muitos gargalhariam comigo.