O Maestro Sacode a Batuta
 
O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe ...
 
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...
 
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
 
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
 
Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...
 
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
 
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
 
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
 


(Poema de Fernando Pessoa, in "Cancioneiro")
Disponível em:http://www.citador.pt/poemas/o-maestro-sacode-a-batuta-fernando-pessoa
Tema(s): Infância

 
- Esta é minha homenagem às crianças. Escolhi esse poema maravilhoso de Fernando pessoa que por acaso descobri ontem lendo uma antologia do mesmo que comprei.  Não sei se aqui no recanto tem crianças, mas tem os filhos dos recantistas  e, nesse caso, não podia deixar de homenagear essa turminha. Um dia fizemos parte dela e com certeza ainda temos muito dela dentro de nós. Ainda mais sendo poetas. E acho que é preciso ter senão a vida seria tão sem sentido. Criança é uma fase linda. E eu acho que todo poeta é um pouco criança porque tem aquela coisa da subversão. Essa coisa de mudar a ordem das coisas, o sentido do mundo. Para uma criança um sabugo de milho pode ser uma boneca, pode ser um cãozinho. E ela pode criar um mundo inteiro dentro de uma sala ou da sua cabecinha.  Assim também é o poeta. Deus abençoe todas as crianças e ilumine os seus futuros, pois às vezes ele parece tão incerto, ainda mais num pais como o nosso e ainda mais num mundo onde a tecnologia e a violência tem roubado a infância de muitas crianças. 




( Imagem: google)