Overload*
Nascido do indivisível errante no espaço,
fendido em dois e estável pela atração,
tornou-se a menor possibilidade da vida,
carbono puro e depois estrutura do não.
Esqueletos, depois carne,
depois músculos e tendões,
ganhou o sopro da minha vida,
e de criança neutralizada e muda,
tornou-se a caixa de muitos dias.
De suas queixas e pequenas alegrias,
de suas chagas e ironias,
nasceram mais coisas e pequenos humanos,
nasceram fábulas e partituras de dança.
E no céu que termina quando quero,
estão passando enquanto vejo
os insetos galantes e fabricantes de valsas,
cavaleiros elisabetanos e números complexos,
tiros ao meio dia e tangos desesperados,
anjos perdidos e crianças de aquarela,
paisagens da noite e cristaleiras antigas,
fardos pesados e alfinetes escondidos,
alfaiataria do mal e química reconstruída,
inocência roubada e réquiens sofridos,
o terno cinza e a cartola de meu amigo,
o carnaval nauseante e o natal sem vida,
as flores mecânicas e o corpo de baile,
a mitologia insultada e a religião falida,
os gêmeos de plástico e o concreto vão,
a pianista tola e o fagotista do rei,
a escola de Atenas e a jangada fria,
a barca do inferno e o cubo vazado,
a marcha para dois e os ingleses temidos,
o navio fantasma e a primavera estilhaçada,
o amor em tempos de guerra e a orquestra banida,
meu coração incógnita e o sangue congelado,
as paredes vazias e o vaso grego imortal,
as mulheres dissecadas e os pregos na mão,
a crucificação flutuante e o escritor de intrigas,
o portal de kiev e o inferno congelado,
os cisnes mortos e o ballet da fadiga,
os pulsos perfurados e a eternidade branca,
o ódio forjado e o épico de mentira,
o amor de passa tempo e a inércia programada,
a tecnologia da espera e a teoria da fome,
a flauta em três partes e a máquina de poesia,
você que me lê e você que se angustia,
o rondó dos infernos e o céu da despedida,
o limbo do tédio e a farsa da alegria,
ursos atados em couro e e o estupro da tarde,
donzelas ruborizadas e declamadoras malditas,
senhoras recatadas e receitas de bolo,
meu desprezo calado e minha oração contida,
o horizonte desconhecido e o passado já amarelado.
Meu mundo e meu negador.
É tudo uma grande mentira.
E é tudo uma pequena verdade.
É você quem me lê?
Ou é você quem se lê?
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* Em comemoração ao meu milésimo texto publicado aqui.
Obrigado a todos que me acompanharam de alguma forma. Em especial a Otto Marin, a quem devo boa parte do que sou como fabricante de poemas.