LUPERCÁLIA (écloga)

LUPERCÁLIA (écloga)

I

Tinha uns olhos buliçosos

D'enxergar tão-só malícias...

Salivando d'antegozos

As rebuscadas delícias

De jovens belas mulheres.

Face a seus rostos mimosos

Imaginava as carícias

Que, virgens, guardam a esposos...

E busca, mesmo a sevícias,

Arrancar-se-lhes prazeres!

II

Dissimulava, contudo,

A sua extrema avidez,

Passando por sério e mudo

Àquelas que por sua vez

Lhe admiravam a prudência.

Tomado de cupidez,

Bastava um ombro desnudo,

Ou algum decote talvez,

Para esquecer-se de tudo

E perder-se na indecência.

III

Ele -- homem de meia-idade --

Sempre em roda às raparigas

Quase um lobo, na verdade,

Como o de velhas cantigas,

À espera da hora mais certa...

Dava-se tal liberdade

Que, com palavras amigas,

Impunha-se a outra beldade

Em meio a suas fadigas

Ou quando menos alerta.

IV

E, obtendo sua confiança,

Sugere um fácil desvio

Que de dedo em dedo avança

Por sobre o peito arredio

Até que revele um seio...

Ao pôr as ideias em dança

E o corpo donzel no cio,

Goza a súbita mudança,

Com um sorriso sombrio,

Visto seu secreto anseio.

V

Ao fauno s'entrega a ninfa

Nas folhas de doce outono...

Junto à translúcida linfa

Das florestas sem dono

E seu borbulhar constante.

Longe, uma andorinha grinfa

A despertá-la do sono

Como fosse a paraninfa

D'esse seu só abandono

Por tão sedutor amante.

VI

Clama em vão de tal desdouro

Após que a virtude lhe falha...

Ignora o passo vindouro

E até se chora ou gargalha

Em face do acontecido.

O outro, grinalda de louro,

Orna-lhe a fronte grisalha!...

Da mesma andorinha, o agouro

Escuta sem que lhe valha

Mais que um olhar atrevido.

VII

Ela seguirá co'a vida

E ele seguirá co'a sua.

Mas a inocência perdida

Para o fauno se insinua

Tão-somente canalhice.

Já a ninfa adormecida,

Sempre pálida e nua,

Ser-lhe-á a imagem retida

Que em lembranças atenua

A solidão da velhice.

Contagem - 22 03 2018