<Canção de um rapaz na montanha

Canção de um rapaz na montanha

Eu vivo na serra

pertinho do céu

cantando

e o meu canto

é uma oração .

Sou o reí dos bosques

rei dos animais.

O manto real

deu-mo um carneiro

numa noite fria.

Em troca o fiz conde

do cume da serra .

A casa em que vivo

deu-ma de presente

um lobo mansinho

neto desse lobo

que o santo de Assis

ameigou um dia.

Os frutos que como

são propriedade

de uma árvore amiga

e sua família.

A água que bebo

é de um bom regato

que nasceu há tempos

entre dois rochedos

que eu já conhecia

que às vezes eu ia

para lá à noitinha

falar sobre aquilo

que se deu com os filhos

do pinheiro velho.

O meu grande amigo

é uma avezinha

poeta coitada.

Dizem que ela é louca .

Será

que à noitinha

é que ela verseja

poisada nas silvas

e canta

e o seu canto

é de enlouquecer

deveras.

-Chorai vales montes

regatos chorai

chorai chorai fontes

chorai que a alegria

com este canto louco

a pouco e pouco

morrendo se esvai.

Chorai que este dia

o dia que vem

não virá jamais.

Será sempre noite

uma noite escura

tendo por vigia

a lua de neve

de palidez crua

tão leve, tão leve

e assustada nua

como amante incauta

que por má ventura

foi surpreendida

noite alta.

Chorai, chorai minha vida

perdida, perdida

sem sol sem amor

só lágrimas

dor

desgraça

loucura. -

E a pobre avezinha

cantando, gemendo

desfalece, cai.

E eu vou ampará-la

aqueço-a ao peito

e depois de beijá-la

com jeito, com jeito

deixo-a voar

-é já madrugada-.

E ela vai dormir

para à noite voltar

e carpir

desfalecer.

Um dia há-de morrer cantando

tal como o rouxinol de Bernardim.

E eu, chorando:

É sina .

É sina o rouxinol morrer assim.

Geraldes de Carvalho

Sombras de Alma - Coimbra 1955