Aquém e além da montanha
Maria abre a janela e grita: - Bom-dia!
- Bom-dia! - responde a outra numa cantinela
Agita desde cedo o cheiro da ferraria
que borbulha como feita em panela.
"Olha o ovo!" - diz João em repique.
"Quanto custa?" - pergunta Jorge, curioso.
"Medida justa, meu senhor do alambique!"
"Dê-me uma duzia, seu João moço".
(Essa é a vida na subida da montanha.
Súbita de ares, pomares e árvores.
Não distantes nem à nossa vida estranha
como o cantar do Quilombo dos Palmares.
Meu Deus, aquém desta montanha verde
sussurra uma vida mansa em terra santa.
Passa um rio sinuoso em quereres
como a vida desse povo que anda.
O moço viu passar charrete pela rua,
um menino com chiclete na boca,
da noite, pequenino, vendo a lua,
vai gritar a sua mãe, vai ficar rouca.
Mas, meu Deus, vê que além desta montanha
outra montanha se constrói mais imponente.
O que será que tem que me estranha
e me deixa em pensamento demente?
Outra vida mais sofrega e magoada,
uma peleja intermitente e exaurida
ou ferida ou feliz ou alegrada
pelo pão de cada dia, mesa querida?!
Talvez uma vida majestosa,
ao invés de dor e sofrimento,
sonolenta em terapia ditosa
sobre cor, macios sarmentos.
A cada dia aquém da montanha
a peleja continua, luta garrida.
E os dias além da montanha
a gente sem drama vive agradecida).
- Boa-noite! - Maria fecha a janela.
- Boa-noite... - a outra responde, triste.
E além da montanha começa a festa
da gente sem drama que a vida assiste.